Por que todo mundo está falando de "Nanette", o especial de stand-up da Netflix
Se você passou pelo mundo das redes sociais nas últimas semanas, há muitas, muitas chances de que você tenha se deparado com menções a “Nanette”, espetáculo de stand-up da comediante australiana Hannah Gadsby na Netflix. Do dia para a noite, a artista ganhou status de estrela internacional e motivou uma avalanche de discussões. E não é à toa: “Nanette” é daquelas experiências que valem ser assistidas, mesmo se você não for um fã de apresentações de comédia.
Isso porque “Nanette” não é um stand-up tradicional. Gadsby questiona e subverte a lógica da comédia ao longo de sua apresentação, o que fica claro logo quando ela anuncia, na primeira metade do set de 1h09, que pensa em deixar de vez a comédia.
A humorista não quer mais fazer uso do humor autodepreciativo que, durante anos, foi a base de suas apresentações. E ela tem um bom ponto: lésbica e com um visual que foge às normas mais tradicionais de gênero, Gadsby cansou de se colocar numa posição inferior para fazer os outros rirem. “Você compreende o que autodepreciação significa quando vem de alguém que já é marginalizado? Não é humildade, é humilhação. Eu me rebaixo para poder falar, para pedir permissão para falar e eu não vou mais fazer isso. Nem comigo, nem com ninguém que se identifica comigo”.
E mais do que isso: as piadas, argumenta ela, não contam uma história completa; são apenas “começo e meio”. Uma de suas piadas recorrentes, sobre um rapaz que a confundiu com um garoto quando ela era adolescente, deixa de fora a parte mais dolorosa do ocorrido. E, hoje, ela não está mais disposta a parar no meio do caminho. “Você aprende com a parte da história na qual foca. Eu preciso contar minha história do jeito certo”, diz.
A vontade de mudar a comédia está imbuída na própria estrutura do espetáculo. Aquecendo o público, a humorista o inicia de forma convencional, com piadas mais leves, antes de trazer mais de sua história e fazer provocações que pesam como socos no estômago em meio às risadas. Criada na Tasmânia, onde até 1997 a homossexualidade era crime, Gadsby fala de homofobia, saúde mental, direitos das mulheres e até de história da arte, sua formação original.
É aí, ao citar a misoginia do pintor Pablo Picasso, que ela entra em uma das discussões mais relevantes em tempos de #MeToo e denúncias contra grandes nomes da indústria do cinema: deve-se separar a arte de seu criador quando ele tem comportamentos inaceitáveis, criminosos até? Para Gadsby, a resposta é um sonoro “não” – e ela não se furta a afirmar que os comediantes também têm culpa na obsessão social em manter intactas as reputações de homens famosos como Bill Cosby e Roman Polanski, em detrimento das vítimas das ações deles.
Conduzindo habilmente o público ao longo de “Nanette”, Gadbsy oscila entre tensão, fúria e descontração. Conforme a apresentação se aproxima do fim, a humorista declara, corajosamente, que não vai ajudar os espectadores a amenizarem seu desconforto: “Vocês têm que aprender como é, porque isso, essa tensão, quem não é normal carrega dentro de si o tempo todo. Porque é perigoso ser diferente”.
Poderoso e relevante, “Nanette” é uma lição sobre a importância de se ter conversas difíceis. E se Hannah Gadsby realmente optar por deixar a comédia, pelo menos teremos um espetáculo excepcional para ver e rever.
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