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Realidade bate à porta da distopia na nova versão de "Fahrenheit 451"

Os atores Michael Shannon e Michael B. Jordan em cena de "Fahrenheit 451" - Reprodução
Os atores Michael Shannon e Michael B. Jordan em cena de "Fahrenheit 451" Imagem: Reprodução

Marcelo Bernardes

Colaboração para o UOL, em Nova York (EUA)

19/05/2018 04h00

Na hora do almoço, em uma sala de reuniões na sede da HBO, centro de Manhattan, o cineasta e roteirista norte-americano Ramin Bahrani, 43, tem fortes motivos para ficar passando suavemente os dedos pelas páginas do livro "O Processo", de Franz Kafka, retirado de sua estante para lhe fazer companhia na mal dormida noite anterior. O livro, enquanto entidade física, foi um assunto bastante debatido por Bahrani desde 2015, quando este filho de imigrantes iranianos convenceu a HBO a comprar os direitos autorais e produzir uma nova adaptação de “Fahrenheit 451”.

Neste clássico literário de ficção-científica, escrito por Ray Bradbury (1921-2010) em 1953, um regime de governo totalitário instaurou censura ideológica, declarando guerra aos livros. Um time de bombeiros garante que jatos de fogo na temperatura-título (cerca de 230 graus na escala Celsius), ideal para se queimar papel, incinerem páginas impressas com a prosa mundial.

“Quando perguntei a um amigo octogenário a opinião dele sobre o livro físico, este me surpreendeu dizendo: ‘por mim, podem queimar todos os livros, eu leio meus Dostoievskis e meus Jo Nesbos arquivados na nuvem, que eu baixo em meu tablete para ler na cama, na praia ou no avião”, diz Bahrani ao UOL. “Se o conceito de um livro no mundo moderno é algo tão estrangeiro e bizarro para uma pessoa de 82 anos, imagine para os jovens? E se baixar um livro arquivado na nuvem não chega a ser uma grande ameaça à literatura, imaginemos companhias como o Google e Facebook controlando toda a informação”.

Em “Fahrenheit 451”, estrelado pelos atores Michael B. Jordan e Michael Shannon, e que estreia neste sábado (19) simultaneamente em mais de 40 países, inclusive o Brasil, Bahrani atualiza a história de Bradbury imaginando companhias da era digital a serviço (conscientes ou não) de um governo opressor. Trata-se de uma solução não muito distante da realidade, especialmente depois do episódio da manipulação de informações políticas divulgadas no Facebook por hackers russos e que ajudaram a embolar a reta final da eleição presidencial americana de 2016, disputada entre os candidatos republicano Donald Trump e a democrata Hillary Clinton.

“Viemos a aprender recentemente como a internet é uma força consolidada, e totalmente conectada a governos. Os EUA ainda estão longe do nível de manipulação da informação na internet como acontece na China, Turquia e Coreia do Norte, mas a gente está pedindo para isso", diz Bahrani.

Queremos as felizes distrações oferecidas pela internet e mídias sociais e, por conta disso, deixamos de ler, de adquirirmos uma opinião inteligente, sem interferências políticas e partidárias.

Cada vez mais perto da realidade

A primeira adaptação de “Fahrenheit 451” surgiu em 1966, sob a assinatura de François Truffaut. Embora considerado um filme importante, a crítica especializada achou a adaptação do famoso cineasta francês tépida. A nova versão da HBO também conta com pedigree. Bahrani, considerado um cineasta independente em ascensão em Hollywood depois dos bem recebidos, mas pouco vistos, “99 Casas” (sobre a crise do mercado imobiliário americano) e “Desmanche – Perigos nas Ruas” (sobre um garoto latino que trabalha num ferro velho de Nova York), co-escreveu o roteiro com o amigo Amir Naderi, cineasta iraniano agora radicado em Manhattan.

Em sua atualização, ambos levaram em conta o fato de Bradbury ter sido um grande visionário de futuras tecnologias, antevendo, especialmente com “Fahrenheit 451”, o surgimento de televisores de 70 polegadas (a transmitir propaganda de governos totalitários em preto e branco), telas interativas de computador, rudimentares formas de emojis e até ‘lançando’ sua versão dos atuais AirPods, fones da ouvido da Apple, que ele batizou na trama de ‘seashells’ (conchas do mar).

Mas a dupla também acrescentou gadgets atuais como o onipresente assistente-virtual  Yukie, aparelho que lembra o Alexa, da Amazon, e a Siri, da Apple, e que propaga para o herói da história, o bombeiro Montag (Jordan), uma meia-verdade. O aparelho diz que o ex-presidente americano Benjamin Franklin foi o responsável pela criação do corpo de bombeiros nos EUA, mas com a missão de queimar livros e não a de apagar incêndios. Clarisse (Sofia Boutella), voz ativa da resistência, preserva vários livros, baixando-os em DNAs ou ajudando cada membro da população a memorizar um livro, palavra por palavra. 

Em tempos de acesso digital, o herói Montag trabalha dobrado. Ele não só queima papel como também destrói discos rígidos de computadores. Ao contrário da versão de Truffaut, em que o personagem é casado com a bela Julie Christie, Montag agora é figura solitária, conflitante, que vive num escuro e moderno apartamento com as últimas comodidades da vida contemporânea.

Ele passa a viver uma relação profissional falsa com seu chefe e ex-mentor, um (como não poderia deixar de ser) sinistro Michael Shannon. Apesar do lobby em torno de seu nome, Jordan, a princípio, recusou a oferta de Bahrani. 

“’Fahrenheit 451’ nunca fez parte do currículo de leitura obrigatória do meu colégio”, explica Jordan ao UOL. “Confesso que só fui descobrir a história de Bradbury por intermédio do roteiro. Apesar de bem escrito, fiquei encimesmado a respeito do personagem: achei que ele era uma figura autoritária, a vitimar pessoas de cor, o que me remeteu ao atual problema da brutalidade policial em comunidades como a minha. Não queria fazer um papel assim”.

Bahrani logo me convenceu que as pessoas de cor escura representavam todos nós, vítimas de profissionais que não se adequam à realidade moderna, ou que não são ajudadas por governos que não oferecem planos de orientação de como se agir corretamente e humanamente. 

Embora “Fahrenheit 451” seja um ataque mais periférico ao governo do presidente Donald Trump, e possível notar algumas estocadas dadas por Bahrani e Naderi. A principal delas, uma homenagem dos roteiristas aos jornalistas (eles são amigos de vários), mostra um historiador explicando uma forma de comunicação de massa “outrora conhecida como jornalismo”. Bahrani teve sacada genial para a escalação do papel. Ele chamou o ator americano Keir Dullea, protagonista de "2001: Uma Odisseia no Espaço".  “Como não escalar para o meu filme o cara que ‘matou’ o computador Hal, em ‘2001'”, diz Bahrani.

O que salvar?

Desde os créditos iniciais até o epílogo de “Fahrenheit 451”, Bahrani “queima” quase que 100 títulos literários mundiais. Ele usa desde “Cem Anos de Solidão”, de Garcia Marquez, passando por panfletagem como “Minha Luta”, de Adolf Hitler, a obras mais contemporâneas como “Dentes Brancos”, da escritora inglesa Zadie Smith. 

Por conta do entrave de direitos autorais, nem todas as capas originais dos livros puderam ser usadas. Versões alternativas foram criadas pela direção de arte do filme. Perguntado pelo UOL sobre que livro salvaria de ser incinerado para sempre da face da terra, Bahrani contesta. Ele exige que sejam três: “Eu salvaria “Crime e Castigo”, do (escritor russo) Dostoievski; “A Canção de Solomon”, da (escritora norte-americana) Toni Morrison; e "Shahnameh", do (poeta iraniano) Ferdusi”.

Sobre a emblemática escolha de "O Processo" como companhia de uma madrugada insone, Bahrani elabora. “Trata-se de um de meus livros favoritos. Meu filme até começa com uma frase do livro. Mas, hoje de manhã, estava me lembrando de uma história de Kafka. Antes de morrer, ele escreveu uma carta endereçada ao melhor amigo, o escritor Max Brod. Esta dizia: “Não leia nenhuma história que escrevi; queime tudo”. E, Max Brod, obviamente, não atendeu o pedido do amigo e optou por publicar a obra de Kafka”.