Teresa Cristina canta Noel Rosa para Temer: "O Brasil dos anos 30 ainda existe"
Mais de 80 anos separam os sambas de Noel Rosa (1910 -1937) da realidade brasileira hoje, mas o que se ouve no disco e no show que Teresa Cristina dedica ao compositor não é nada datado.
Uma das compositoras e intérpretes mais importantes do gênero na atualidade, essa carioca de 50 anos vem de um longo período dedicado a pesquisa do cancioneiro de sambistas clássicos, como Paulinho da Viola e Cartola.
No caso de “Teresa Cristina canta Noel: Batuque é um privilégio”, turnê com a qual percorre o Brasil, com direção musical de Caetano Veloso e o balanço do violonista Carlinhos Sete Cordas, o que impressiona são os ecos de 1930 em pleno 2018. “O Brasil que ele viu ali no início do século passado ainda existe. São as mesmas questões”, observa a cantora ao UOL.
Compositor branco, de classe média e estudante de medicina, Noel introduziu a malandragem das ruas no círculo intelectual. Sua posição privilegiada trazia um olhar único de cronista, que observava de forma crítica e debochada um país que lutava contra o retrocesso. Parece familiar?
Assim, a canção “Onde Está a Honestidade?”, com versos que ironizam a elite carioca daquela época, parece ser direcionada aos políticos na lista da Lava-Jato. “E o povo já pergunta com maldade / Onde está a honestidade?/ O seu dinheiro nasce de repente”.
No show, que volta em São Paulo neste fim de semana, Teresa até dedica o samba ágil “Seja Breve” ao atual presidente do Brasil. “Essa Noel com certeza fez para o Temer”, ironiza. “Você sabe que vampiro vive mais de 100 anos, né?”
Não que os 26 anos de Noel Rosa, bem distribuídos entre a boêmia e a filosofia, não carregam contradições. Fruto do contexto histórico machista, o compositor ousou ao imaginar uma mulher independente em “X do Problema”. Porém, ao mesmo tempo, ameaçava em “Mulher Indigesta”: “Mas que mulher indigesta / Merece um tijolo na testa”.
A canção violenta passou longe do disco e do show -- sinal de que pelo menos alguma coisa mudou desde a época de Noel. “Não dá mais para cantar uma música dessas”, explica Teresa.
Não é só o Noel. Tem muitos sambas que eu já cantei na Lapa e que hoje em dia, meu Deus do céu, eu não canto nem que me obriguem
UOL - Como foi costurar esse repertório? Existia algum recorte na sua cabeça?
Teresa Cristina - Eu gosto muito de pesquisar a obra de um compositor. No caso do Noel, eu procurei fugir do lugar comum de “as melhores do Noel”. Pensei em músicas que caíssem bem com meu timbre de voz, músicas que me chamassem atenção. Muitas continuam atuais. Muita gente diz que era uma ação visionária. O Brasil que ele viu ali no início do século passado ainda existe. São as mesmas questões. Ele tratou isso da melhor maneira, com ironia e deboche, mas de uma forma inteligente e muito bonita também. Ele consegue casar sílaba, verso e rima tudo em um lugar. É um deleite.
O mais interessante nessa sua sequência de discos de releituras é o quanto esses compositores, muitas vezes taxados de datados, na verdade são bastante atuais.
Se tem uma coisa que o Noel não é, é datado, e ele é um dos compositores mais antigos. Ele fez essas canções em um período de sete anos, dos 20 aos 27 anos. É quase mediunidade. E sendo um intelectual, ele fala de filosofia, de literatura, brinca com versos do Shakespeare e de Augusto Conte, tudo isso no samba, que é uma coisa tão popular. Eu gosto muito do deboche ao falar de um Rio de Janeiro que queria ser francês.
É uma ironia que eu acho necessária para a gente sobreviver hoje. O Brasil, se não for rindo, não vai, não desce.
E o Rio ainda continua assim?
Tem essa classe média carioca, uma coisa de “Ah não, isso a gente não quer, a gente não quer ficar nesse lugar”. É um medo que... nem sei que medo é esse.
“Cadê a Honestidade?” foi uma escolha intencional então?
Essa música pediu para ser gravada hoje. Poderia ter sido feita este ano.
Até o verso “Feche a porta da direita com muito cuidado”, da canção “Conversa de Botequim”, soa como um recado atual.
Eu grito esse verso no show. Eu acho que o samba era muito empostado. Tudo era muito sério, os artistas eram bem sérios. “Conversa de Botequim” quebra esse paradigma. Quem veio depois do Noel tinha carta branca para falar de outro jeito. Nessa música de 1935 ele pede dinheiro para o garçom porque ele deixou o dinheiro dele com o bicheiro. Até hoje, em 2018, a gente fala do jogo do bicho. Eu acho bem forte ele usar essa expressão. Tem outra música dele muito importante, onde ele viu uma mulher que não existia na época dele. Em "X do Problema”, com aqueles versos “eu fui educada na roda de bamba / eu fui diplomada na escola de samba”. Nenhuma mulher tinha sido diplomada na escola de samba em 1930. “Sou independente, conforme se vê”. Que mulher era independente naquela época? Ele colocou a mulher em um lugar que a gente ocupa hoje, ou quer ocupar. Até porque a mulher que existiu na escola de samba com essa importância foi Dona Ivone Lara, que foi obrigada, durante muito tempo, a assinar música com nome masculino para poder ser gravada.
Por outro lado, ele fez “Mulher Indigesta”, com versos violentos: “Mas que mulher indigesta / Merece um tijolo na testa”.
Não senti vontade de gravar. Não dá para bater o martelo tão pesado em cima do Noel pela realidade que ele vivia naquela época. Em “X do Problema” eu acho um acerto, porque mesmo sabendo que aquela não era a realidade das mulheres que ele via nas ruas, ele fez questão de compor assim. Não é só o Noel, mas têm muitos sambas que eu já cantei na Lapa e hoje em dia, meu deus do céu, eu não canto nem que me obriguem.
Você como intérprete também passou por uma desconstrução?
A gente está tão anestesiada com tanta coisa que não percebe. Por exemplo, eu cantava: “O teu cabelo não nega, mulata / Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega, mulata“. Eu cantava e achava incrível, como a cor não pega. Até que alguém falou: “Olha só, essa não. Essa música é racista, essa música não dá”. Tem outra que quando cantavam eu batia palma na roda de samba: “Se essa mulher fosse minha eu tirava do samba, já, já / Dava uma surra nela que ela gritava chega”. Olha isso! Não dá para cantar uma música dessas. O que me entristece é que tem pessoas que falam: ‘Que absurdo. Tem que respeitar o compositor”. Respeitar não é passar pano. Quando a gente escolhe uma música a gente precisa passar a verdade daquela canção. Eu não posso cantar uma música que eu não acredite. O que eu quero daqui pra frente é colocar mais o gênero feminino nas canções. A gente tem poucas compositoras no samba. O gênero feminino acabou entrando pela generosidade de alguns compositores, como Assis Valente, Gonzaguinha, Chico Buarque. Mas dentro disso, tem muita letra que não cabe mais.
Hoje os movimentos feministas têm apontado e denunciado letras misóginas ou machistas. Teve a do Chico Buarque...
Uma bobagem. Sou apaixonada por “Tua Cantiga” desde quando ela saiu. É linda demais. Tem uma diferença grotesca que separa essa canção de versos que eu cantei minutos atrás. O que aconteceu é que problematizaram a música do Chico. Achei bizarro isso.
Chico é apenas um exemplo. É comum ver nomes como o do próprio Noel Rosa, João Bosco...
Ah, eu sei qual é essa. “Quando você gritou mengo / no segundo gol do Zico / tirei sem pensar o cinto e bati até cansar” (“Gol Anulado”, de João Bosco) É bizarro. Não dá mais para cantar. Nenhuma mulher merece apanhar. Tem uma coisa muito séria acontecendo há muito tempo. As mulheres estão morrendo. A mulher termina o namoro, o cara vai lá e mata. E isso continua existindo pela certeza da impunidade. Essas coisas têm que vir a tona, mas acho que quando a gente gasta nossa energia e nosso pensamento lógico com “Tua Cantiga” estamos perdendo uma grande oportunidade. As mulheres têm que parar de morrer. Esse abuso tem que parar.
Assim como “Mulher Indigesta”, “Feitiço da Vila” também ficou de fora. Foi pelos versos “A vila tem um feitiço sem farofa. Sem vela e sem vintém”?
Eu já me aborreci demais por causa da música, já perdi amizades inclusive. Eu não consigo cantar essa música, me dei o direito de não cantar. E também não cabe a mim acusar Noel de racista por causa de uma canção. Ele tem uma obra e uma obra que eu escolhi cantar. Não sei se foi porque eu vesti a carapuça. Sou umbandista.
Diferente de “Feitiço da Vila”, você teve uma relação forte com os sambas do Candeia em uma época difícil no colégio.
Quando eu ouvi Candeia pela primeira vez eu ficava pensando nas coisas que ele falava, que negro era importante, que negro era lindo. Eu pensava: Esse cara é maluco. Qual o propósito disso? É bom ser negro? Para mim era horrível. Na minha rua, eu ia para escola e tinha um garoto que ficava no muro me esperando só para me xingar. Sofria muito com aquilo. No colégio não existia uma ação para impedir isso. Era, sei lá... como se fosse normal. Quando eu entrei na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) voltei a ouvir o disco do Candeia e comecei a achar espetacular. E aquilo era a pura verdade.
O Candeia me fez olhar no espelho e me achar uma mulher bonita. Eu era uma mulher bonita e não sabia, porque durante muitos anos as pessoas diziam que eu era as piores coisas do mundo. Então a força de uma canção, o empoderamento que eu posso tirar de um verso, é algo muito bonito. Por isso eu acredito muito na força do verso.
Falando nisso, no show você dedica os versos de “Seja Breve” ao Michel Temer?
O Noel com certeza fez para o Temer. Você sabe que vampiro vive mais de 100 anos, né? Lá naquela época, em outro século, ele viu isso e falou: “Pera aí” (risos) Só pode ser para ele, não tenho outro destinatário. Eu canto para o Temer. E a plateia também.
Serviço:
Teresa Cristina canta Noel: Batuque é um privilégio
Sexta e sábado, 11 e 12 de maio, às 21h30
Local: SESC Avenida Paulista - Avenida Paulista, 119, Bela Vista, São Paulo
Ingressos Esgotados
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