A transformação que fez Anelis Assumpção deixar de ser só a "filha de Itamar"
Crescer com o rótulo “filho de...” pode ser aprisionador para qualquer artista. Anelis Assumpção, filha do "maldito" Itamar Assumpção, não renega em nada o passado -- pelo contrário, é ela quem cuida do espólio do pai --, mas, com seu terceiro disco, “Taurina”, diz que enfim encontrou seu lugar como artista. A cantora, que se apresenta nesta quinta no Vão do Masp, em São Paulo, às 19h, refletiu em entrevista ao UOL sobre seu momento e as mudanças que trouxeram o álbum, a morte da irmã e sua tentativa de ser menos “quadrada” no mercado musical.
O álbum “Taurina” mistura gêneros -- MPB, afrobeat, dub -- e formatos, saindo do caminho comum de apenas enfileirar canções. Ele é permeado por poemas e por áudios de WhatsApp tirados de conversas do dia a dia de Anelis com gente como Liniker, Tulipa Ruiz e Céu, que também cantam em algumas faixas.
“A repercussão tem sido muito positiva. Fomos recebidos com braços abertos pelas pessoas. Vejo como mais um tijolinho nessa construção de uma identidade, de uma obra. Neste terceiro disco me sinto mais segura como compositora, mais pronta, começando a aceitar que meu papel na música brasileira não é o que o que eu achava que era”, explica ela.
Anelis diz que se via e que se esperava dela algo como uma intérprete, com timbres e gestos já previstos. “Achava que esse papel era ser um tipo de cantora, ou ser filha de alguém com uma importância. Com esse disco, comecei a ter a noção de ser uma mulher que canta e que compõe.”
Este processo é profundo para a cantora. Antes, fazer sucesso, diz ela, era ir ao “Domingão do Faustão” receber um disco de ouro ou de platina. Hoje, ter 100 mil pessoas interessadas em sua música em uma plataforma digital também pode ser um sinônimo de sucesso.
“O fato de hoje a gente ter uma forma mais democrática de consumir a música faz com que rótulos, esses como o que meu pai foi emoldurado, percam um pouco o sentido hoje. Não é só quem vende mais que é melhor. Estou observando isso, refletindo sobre o mundo que eu acreditava que estava fadado pra mim, por ser filha de um compositor maldito, marginalizado. Mas a gente precisa lembrar disso e criar uma filosofia nova para o mercado independente”, diz ela.
Itamar se destacou nos anos 1980 e 1990 na cena alternativa e independente e morreu em 2003. Com a Vanguarda Paulista, desafiou o sistema convencional das gravadoras, ganhando a alcunha de “maldito”. Anelis vê na briga entre o “sistema” e a vanguarda uma disputa muitas vezes sem sentido entre quem quer saber o que é mais valioso: o diamante bruto ou o lapidado?
“’Taurina’ tem um pouco esse aspecto, onde eu transito como a filha de uma pessoa que era esse cristal bruto, e que era mesmo visto só por pessoas 'inteligentes', quebrando alguns padrões e pré-requisitos”, diz ela.
No disco, ela tentou deixar de lado a busca por algo “radiofônico” ou com uma duração normal. “As músicas foram acontecendo. São elas que falam, elas mandam mais do que a gente manda nelas. Tanto que algumas não querem participar (risos). A gente coloca muito limite para que elas existam, e começa a ficar chato.”
Anelis pôde homenagear o pai no mês de abril, em uma série de shows em Salvador dedicados a ele, com releituras baianas de sua obra, capitaneadas pelo músico Du Txai.
Até hoje, Anelis traz lições aprendidas com Itamar. “Quando vejo que ele teve a grande importância que teve, tenho pena de não ver grandes artistas falarem da importância de meu pai ter tido uma resistência ao mercado. Ele abriu possibilidades para um monte de artistas. O mais importante aprendizado é o que ele sempre pediu: ‘Não tenham preguiça de pensar; pensa, questiona, pergunta por quê... Não seja uma pessoa desmotivada por causa do sistema’”.
Os áudios do WhatsApp
Anelis explica que o uso dos poemas e áudios de WhatsApp são inspirados pelos discos de rap dos EUA que a influenciam e que dão importância à palavra. Para ela, o Brasil tem ainda mais chances de ser mais plural em suas expressões artísticas, mas acaba se prendendo aos padrões.
“De um tempo pra cá, a música brasileira se mostra de uma forma tão encaretada, da arte gráfica à produção musical”, diz ela, que vê suas ousadias ainda com “timidez”. “Os movimentos são lentos, a gente faz discos caretas, cria uma moda careta. E a gente imita o pior da produção internacional. Precisa ter um pouco de audácia com formato, com padrão.”
A escolha pelos áudios de WhatsApp é curiosa, porque foram momentos de conversas privadas, tornados públicos, mas que não expõe totalmente os envolvidos. “É uma intimidade, mas continua sendo extremamente privado. Quando você desloca o assunto que estava sendo dito ali, vira um poema”. Todas as artistas amigas foram consultadas e aprovaram o uso em “Taurina”.
Inspiração na irmã
Anelis perdeu a irmã em 2017, vítima de câncer. Serena também era cantora e contribuía com as criações de Anelis, e sua morte acabou influenciando em “Taurina”. O disco foi escrito enquanto Serena tentava tratar a doença e, assim, tanto se tornou uma homenagem à irmã, quanto foi uma reflexão sobre vida e morte e temas que ela trazia, como o feminismo.
“Aprendi muito com minha irmã. Ela me deu livros, discutia, se colocava, colocava questões, argumentava em assuntos sobre machismo e feminismo. Depois da morte dela, comecei a notar que quase tudo que tinha escrito estava relacionado a ela, à doença dela, mas quando eu escrevi não foi pensando sobre isso”, explica Anelis. Letras como a de “Mortal à Toa”, falando sobre a “desgraça de ser mortal” e a “a graça de estar mortal”, mostram isso.
Serena aparece como compositora de “Chá de Jasmim”, uma letra que havia pedido para a irmã musicar. “(O álbum) É uma forma de agradecer o tempo que ela esteve aqui e as contribuições dela pra mim, para o mundo e para o filho dela”, encerra Anelis.
SERVIÇO:
MÚSICA NO VÃO com Anelis Assumpção
Local: Vão do Masp, Avenida Paulista, 1578 - São Paulo
Dia: 3/5, quinta-feira, às 19h
Grátis
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