Como um estilista encontrou na música a passarela perfeita para suas criações
Desde quando levou suas criações pela primeira vez na passarela da Casa dos Criadores em 2017, Victor Apolinário foi logo alçado ao posto de “sensação” da moda. Mas o que esse jovem vindo da periferia da Zona Norte de São Paulo buscava com sua recém-lançada marca, a Cemfreio, era justamente romper com os vícios e os padrões – tanto estéticos, quanto de mercado. A passarela em linha reta era estreita demais para isso.
Suas criações agora aparecem sob outra luz, seja nos corpos que dançam no clipe de “Bumbum de Ouro”, hit de Gloria Groove, no momento em que Pabllo Vittar sobe no ringue (no vídeo de “K.O.”, sucesso que explodiu em todo o Brasil) e no centro do palco onde novos rappers buscam ampliar seus universos para além das rimas.
“O mundo da moda é muito pautado na passionalidade e não falo de coração. É quase: ‘ A bola é minha e vai ser do jeito que eu quero’, sabe? Nesses encontros eu consigo entender que o que eu faço não é moda, não é figurino, não é essa preposição. É questionar a forma do corpo, para além dos gêneros e arquetípicos”, explica. “Estamos aqui como uma gang mesmo.”
Uma gang formada por corpos e vozes que em um passado não tão distante estavam à deriva. É o caso de Linn da Quebrada, que desconstrói os padrões de gêneros no funk, do tempero que as drags cantoras tem dado ao pop brasileiro e de quase toda a nova cena do rap e do R&B, liderada por uma geração mais diversa e aberta, como Rincon Sapiência, Don L, Diomedes Chinaski, Febem, Flip, Kafé e Jé Santiago. Seja qual for o "rolê", a missão é uma só: Fazer da estética um novo canal de comunicação.
“A música não é só Spotify, não é só clipe do YouTube. A música, assim como todas as representações artísticas, precisa estar interligada com outros fatores de inteligência humana”, acredita o estilista. “Para traduzir o que se passa, desmistificar ideias e imagens, e não ser apenas um monte de referências vindas de fora”, disse ao UOL, enquanto terminava o figurino para o próximo show de Don L, que aconteceu no último fim de semana.
No palco em formato 360° do Centro Cultural São Paulo (CCSP), ao som de batidas que esbarram no eletrônico, o rapper cearense surgiu com macacão feito de lona, com ideogramas Nsibidi, escrita indígena vinda da África Ocidental, costuradas com fita reflexiva, que brilhavam conforme o artista de movimentava.
Ali no centro, o rapper era uma espécie de operário, vindo de um futuro radioativo, mas guiado por elementos ancestrais. "Tem esse elemento cyberpunk, o que tem muito a ver com a proposta do disco [“Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3”]", observa Don, que considera o encontro com Apolinário um ponto de virada.
“Proporciona uma experiência visual e presencial para que as pessoas consigam sentir nos shows aquilo elas sentem no disco”, explica. “Sempre tive isso na cabeça como uma das questões principais: Trazer as pessoas para fora do lugar comum, do conforto.”
Cem (nenhum) freio
A Cemfreio nasceu há mais de dois anos com esse mesmo sentimento de inconformidade. “Sempre foi uma representação de coisas que nunca encontrei por aí, não só de vestuário. Nunca encontrei nada que conseguisse atribuir tudo que eu curtia, tudo que eu tinha de inteligência, tudo que eu tinha vivenciado. Inclusive na música”, diz o estilista de 23 anos que “pirava”, ainda criança, nas artes das capinhas de coletâneas de rap, uma febre nas quebradas. “Foi minha primeira relação com a arte gráfica”, se recorda.
Suas roupas hoje não carregam apenas referências do rap. Com 15 anos, o material de confecção com que tinha mais familiaridade era o couro da bateria que tocava em uma banda de metal extremo cover de Napalm Death.
Corres tão diferentes que marcam suas criações até hoje. “Isso fez minha formação artística ser tão ligada ao executar, ao barulho, a reverberação. Eu não consigo desvincilhar uma coisa da outra”, diz. Não à toa, ele se recusa a ser um cara dos bastidores. É fácil encontra-lo pulando no meio do público dos artistas que veste, sempre com as coreografias mais animadas. “Vou de fanzoca mesmo”, admite.
Pabllo Vittar, a roommate
A primeira vez que Apolinário experimentou criar a imagem de um artista foi na própria casa, em uma temporada que passou em Uberlândia (MG), quando dividia o espaço com Pabllo Vittar. Antes da drag invadir as casas dos brasileiros em horário nobre, suas criações estavam na primeira participação da cantora em um programa de TV e nos looks dos clipes. Tanto o maiô com a inscrição “Passivo Agressivo” (em "Todo Dia") quanto o quimono pintado à mão (em "K.O.") chamaram atenção.
Foi quando passou a criar do zero microcoleções a partir da perspectiva dos artistas com quem encontrava. Rincon Sapiência fez sua estreia em um grande festival este ano, durante o Lollapalooza Brasil, e contou com o figurino de Apolinário. Em “Bumbum de Ouro”, clipe irresistível de Glória Groove, que já passou dos 16 milhões de visualizações, assinou a direção de imagem de todos os figurinos dos dançarinos.
A partir da experiência, Gloria passou a fazer parte da gang e Apolinário, mais consciente da própria arte. “O meu lance é conseguir criar um ponto de descolamento dessa imagem principal que a pessoa se autodefine, sem perder a essência da parada.”
É com o rapper Diomedes Chinaski, um dos catalisadores da mudança do rap fora do eixo Rio-SP, que ele pretende dar um passo mais largo nessa direção. Em algumas semanas, o artista grava um clipe onde vai aparecer com uma roupa assinada por Apolinário – toda feita de papel.
Desenvolver essas ideias dentro de um gênero ainda considerado fechado e machista pode até ser tarefa árdua, mas mexe direto nas estruturas que cada artista quer quebrar.
“A maior questão do meu trabalho com o rap, principalmente do Don L e Diomedes, é desconstruir essa impressão sobre como ser homem que eles têm, e é coisa de histórico mesmo, sacou?”, explica Apolinário. “Eles têm esse recorte de serem homens heterossexuais, então não são pessoas que já deslocam essas relações de masculinidades no dia a dia”.
“Mas até convencer os meninos a usar uma sandália, uma coisa na cabeça, uma roupa mais justa, uma coisa na cabeça, usar roupa pintada, demorou muito”, conta.
O resultado é um trabalho que nem mesmo a cena lá fora consegue vingar. “Se fazer igual, vai ser mais uma música no Spotify, vai ser mais uma roupa no mundo. Quando a gente encontrar nossos pontos de fraquezas, aí a gente vai ficar maluca”, observa, sem esconder que a onda apenas começou. “A brisa ainda não bateu o 100%"
A gang, por Apolinário:
Pabllo Vittar
"A Pabllo se tornou quase o cartão de visita desse corpo que não é nem masculino e nem feminino, mas também não é andrógino. Ela conseguiu entrar na casa de todo mundo nos horários mais populares. O poder de comunicação que ela tem hoje é tão grande e ela está usando de um jeito tão bonito e positivo para comunicar a inserção desses corpos que são destoantes para a média máxima, que somos nós as pretas, os gays, os nordestinos. Tenho muito orgulho de ter participado em mais de um momento na trajetória da Pabllo. Ela representa para mim a diáspora da imagem de um profissional do pop hoje."
Don L
"O Don L está pelo corre de fazer um trampo de experiência. É muito importante estar com o Don neste momento, de construir essa nova noção de entretenimento, principalmente no rap brasileiro. Hoje, além de todo esse carregamento que ele tem com o grupo de rap Costa a Costa, e todo esse trampo com a carreira solo, ele ensina, ele traz. A gente construiu uma aliança tão forte que as proposições partem e acontecem a todo o momento. Foi o primeiro artista que topou fazer do jeito Cemfreio e porra, mó honra. O cara é lenda!"
Rincon Sapiência
"Rincon fala do nosso resgate, dessa importância absurda de estarmos juntos, como unidade, mas sem perder o que a gente tem hoje. E ele é bem virginiano, olha tudo, sugere, acompanha. O show no Lollapalooza foi uma das experiências mais absurdas, até me reconhecem na quebrada por conta desse dia! Finalmente posso dizer que eu assinei todos os rappers foda que eu sou complemente apaixonado pelo trabalho e pelo legado."
Gloria Groove
"Daniel [Garcia] sem dúvida nenhuma é o desenho mais importante para os jovens. Ele soube do seu dom muito cedo e se posicionou com o corpo, a consciência e a excelência do trampo dele de um jeito muito bonito. Hoje, esse lance de se concentrar e se estabelecer em uma visão direta, e trazer excelência a isso, é o que a Gloria traz para mim tanto no contexto social, quanto na construção de diálogos. “Bumbum de Ouro” foi um marco para mim. Ele é um dos artistas com que tenho à relação mais próxima, temos a idade mais próxima, temos as mesmas vontades e as referências sempre se completam!"
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