As "fake news" de Adoniran: As histórias do sambista que ainda geram controvérsia
Não precisa entender muito do riscado para saber que o samba paulista foi inventado por Adoniran Barbosa, mas pouca gente sabe que Adoniran foi inventado pelo compositor e humorista João Rubinato. E no meio disso tudo, com a mesma liberdade ficcional que o fez famoso nas rádios nos anos 1940 e 1950, o sambista inventou e embaralhou histórias.
O grande mérito de "Adoniran - Meu Nome é João Rubinato", documentário que abriu e integra a programação do Festival É Tudo Verdade, em São Paulo e no Rio de Janeiro, é chegar mais próximo do homem por trás da figura carismática e anacrônica que andava de gravata borboleta e chapeuzinho de lado, compositor de sambas que ficaram marcados no imaginário brasileiro, como "Saudosa Maloca", "Tiro ao Álvaro" e "Trem das Onze", embora a missão seja quase impossível.
A cada passo dado durante a pesquisa, o cineasta Pedro Serrano --que já havia passeado por esse universo no curta ficcional "Dá Licença de Contar", com Paulo Miklos personificando o sambista do Bixiga-- descobriu que, malandro que era, Adoniran não apenas inventou um linguajar novo, ao misturar sotaques e caricaturas, como criou uma narrativa quase fictícia da própria história, apesar de sempre defender que só "cantava verdades".
Assim foi com "Samba de Arnesto", sobre um amigo que marca uma roda de samba e não aparece. O verdadeiro Ernesto morreu negando a história. Adoniran teria dito ao "homenageado" na canção: "Ernesto, segura essa. Se não tivesse bolo, não teria samba".
A trágica "Iracema", sobre sua paixão que é atropelada na contramão, também é colocada em xeque. Um amigo conta uma história sobre uma mulher que poderia ter inspirado o compositor. O sobrinho desmente. "'Trem das Onze'? Ele deve ter ido duas vezes a Jaçanã, só para fazer show", rebate Sérgio Rubinato sobre o tio que, vale lembrar, não era filho único.
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Sobre os amigos do Demônios da Garoa, grupo instrumental que ajudou a popularizar seus sambas, ele mesmo relatava brigas para a imprensa. Segundo os entrevistados no documentário, todas fictícias.
Prova de que Adoniran se divertia com as "fake news", conceito popularizado nos dias de hoje, é quando o próprio foi manchete em um jornal nos anos 1950. Na época, mais conhecido como uma estrela dos programas de rádio, ele avisou que estava largando tudo para se tornar barbeiro. Não era para tanto. Ele apenas ia viver um personagem barbeiro no filme "Esquina da Ilusão", em 1953.
"Era uma coisa que ele mesmo alimentava de propósito, como uma maneira de se divertir", conta Serrano. "Ele não tinha paciência para dar entrevista. Quando um repórter perguntava alguma coisa, ele inventava. Eram notórias essas controvérsias e ele não fazia questão nenhuma de esclarecer".
Adoniran morreu em 1982, mas deixou plantada mais uma sementinha que gera discórdia até hoje.
A história chegou a Serrano ao fim de uma sessão de "Dá Licença Pra Contar". Tratava-se de uma pasta cheia de músicas inéditas escritas por Adoniran. Editadas desde 1990, elas estavam prestes a ganhar forma pela primeira vez em estúdio, na voz de artistas como Fernanda Takai, Criolo, Ney Matogrosso e Liniker. "Eu, obviamente, como alguém que estava estudando Adoniran, fiquei louco e fui atrás disso", conta o cineasta.
O projeto de CD e DVD "Se Assoprar eu Posso Acender de Novo" acabou dando origem a muito das pesquisas e divertidas contradições vistas no filme, mas o cineasta percebeu que o material inédito era visto com ressalvas por quem havia convivido com o sambista. Os versos rebuscados, registrados à mão, estavam distantes do universo em que Adoniran orbitava.
Em determinado momento das filmagens, Serrano desistiu de seguir com a história, em um movimento semelhante já feito pelo biógrafo do sambista, Celso de Campos, ao lançar "Adoniran - Uma Biografia", em 2010. "Todas as polêmicas foram feitas em vida e alimentadas por ele. E isso são coisas que aconteceram depois. A gente não tem a mesma legitimidade para falar", defende Serrano.
O álbum foi lançado com ampla divulgação pela gravadora Eldorado. Responsável pelo selo, Murilo Pontes afirmou ao UOL que as canções foram reveladas por um antigo amigo de Adoniran, Juvenal Fernandes, e que algumas dessas músicas já haviam sido lançadas em 2000 no álbum do cantor Passoca. "Engraçado que na época ninguém falou nada", afirmou Pontes, que confirmou que um exame grafotécnico foi feito pela Arlequim, editora do cancioneiro de Adoniran. "Essas mesmas canções foram submetidas à filha do Adoniran, que disse: 'Isso é do meu pai mesmo'", defende.
Palhaço melancólico
Há, ainda assim, muitas verdades em "Meu Nome é João Rubinato", distantes dos causos folclóricos. "Ao apresentar o curta, percebi que existia uma associação entre a obra e a figura dele. Muita gente sabia cantar 'Trem das Onze' e 'Saudosa Maloca', mas não sabia quem era Adoniran Barbosa de nome, além dessa figura que ele vestiu publicamente", observa Serrano.
Por trás das tiradas e da maneira jocosa de falar e cantar, havia um compositor solidário ao povo, sensível às mazelas sociais e um tanto melancólico. Elis Regina talvez tenha sido a primeira a jogar luz a essa faceta, ao interpretar de forma dolorosa "Saudosa Maloca", canção trágica sobre um cortiço que está sendo demolido.
Em seus últimos anos de vida, o próprio Adoniran virou uma figura sorumbática, sem dinheiro e que viajava em um fusca para fazer seus shows. Na mesma São Paulo, cujo progresso rápido e cruel acompanhou, ele passou a vagar com um único destino: o sofá na recepção da rádio Eldorado, onde tirava longas sonecas, talvez por estar próximo de um mundo que se desfez.
Preparando agora um longa-metragem ficcional sobre Adoniran, Serrano promete adentrar em todas essas camadas. "[O filme] Vai se aprofundar nesse universo criativo e nesses conflitos urbanos, desse 'pogréssio' [como o paulista cantava em 'Conselho de Mulher'] como inimigo da população de baixa renda."
SERVIÇO:
“Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”
Festival É Tudo Verdade 2018
Rio de Janeiro
17/04, às 18h
RJ – Estação Net Botafogo
São Paulo
19/4, às 17h
Centro Cultural São Paulo – CCSP
22/04, às 11h
Sesc 24 de maio
Programação completa: http://etudoverdade.com.br/br/programacao/
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