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"Jessica Jones" prova mais uma vez que não é sobre heróis (e isso é ótimo)

Jessica (Krysten Ritter) em cena da segunda temporada de "Jessica Jones" - Divulgação/Netflix
Jessica (Krysten Ritter) em cena da segunda temporada de "Jessica Jones"
Imagem: Divulgação/Netflix

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

09/03/2018 04h00

Quando “Jessica Jones” surgiu em 2015, poderia ser só mais uma de muitas produções baseadas em super-heróis. Mas logo nos primeiros episódios ficou claro que os superpoderes de Jessica (Krysten Ritter) eram um mero detalhe. A série se revelou o melhor da parceria entre Marvel e Netflix ao trazer um vilão muito mais real (e por isso mais assustador) do que uma organização internacional comandada por chefões do crime imortais: o abuso sexual e psicológico.

Kilgrave (David Tennant) era a personificação dessa violência: um homem manipulador e mimado, que ainda por cima tinha o poder de controlar a mente de outras pessoas. Poder que ele usava, claro, para satisfazer suas vontades, e com o qual ele manteve Jessica sob seu domínio por algum tempo, em uma metáfora hiperbólica de um relacionamento abusivo.

O vilão se foi, mas se na primeira temporada Jessica teve que lidar com as cicatrizes desse abuso e ainda proteger (com relutância) o resto da população de Nova York de sofrer o mesmo destino, na segunda temporada, que chegou à Netflix esta semana, o foco continua sendo seus traumas, mesmo sem um grande psicopata a quem combater.

A detetive particular mais durona de Nova York ainda está abalada por ter matado seu abusador. Não tanto por ele, que certamente merecia o fim que levou, mas pelo medo de ter realmente se tornado uma assassina, já que dessa vez matou alguém por vontade própria, e não sob o controle de Kilgrave. O mundo agora a trata como uma justiceira, quase uma matadora de aluguel, e ela ainda não está muito certa de não ser essa pessoa.

Mas não só isso. Tantos anos depois, Jessica ainda não consegue aceitar o fato de ter sobrevivido ao acidente que matou toda sua família, e ainda por cima com superpoderes que ela hesita em usar com o heroísmo típico daquelas que se dedicam a combater bandidos e salvar inocentes. Ela acaba fazendo isso a contragosto, mas não significa que tenha abandonado os esforços para nunca se ligar emocionalmente a ninguém.

Mas são exatamente esses traumas que ela vai ter que enfrentar na nova temporada. Jessica finalmente cede à insistência de sua melhor amiga, Trish Walker (Rachael Taylor), e decide investigar a misteriosa organização que a salvou e, ao mesmo tempo, lhe deu poderes. Com direito até a sessão de hipnose. Se isso não é uma personagem completa e complexa, sendo apresentada de uma maneira completa e complexa, não sei o que é.

E é por isso que “Jessica Jones” é muito mais interessante do que “Demolidor”, “Os Defensores” e “Luke Cage” (não vamos nem comentar “Punho de Ferro”, ok?), e mesmo que a maioria dos filmes de super-heróis que, convenhamos, quase nunca fogem de uma fórmula juvenil.

Que filme ou série de super-heróis vai fundo assim na psique de seus personagens? Que produção pop se arrisca a focar mais no que se passa dentro da cabeça da protagonista do que fora? E faz isso sem acelerar o ritmo, deixando o suspense se desenrolar pelo tempo necessário? Pois é, poucas, e certamente nenhuma baseada em quadrinhos.

Jessica (Krysten Ritter) confronta homem em cena da segunda temporada de "Jessica Jones" - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Jessica continua a ter um temperamento "difícil" na segunda temporada de "Jessica Jones"
Imagem: Divulgação/Netflix

Os coadjuvantes também são igualmente bem desenvolvidos e lidam com seus próprios traumas, o que faz deles tão interessantes quanto Jessica. Trish vive sob a sombra da mãe exploradora e de um abuso na adolescência, e, talvez para compensar, tenta ser a heroína que Jessica se recusa a ser. Malcolm (Eka Darville) é um ex-dependente químico em recuperação que se apoia no trabalho com Jessica para dar conta da recuperação. Até a fria e calculista advogada Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss) precisa superar o fato de ter matado a própria mulher sob influência de Kilgrave e agora estar completamente sozinha no momento da vida em que mais precisava de apoio.

Se já não fosse tudo isso, ainda temos o prazer de ver na tela uma mulher que não é só forte (o inferno está cheio de “personagens femininas fortes” bem intencionadas), mas cheia de contradições, intragável e irresistível ao mesmo tempo, que não tem nenhum pudor em exercer sua sexualidade e não esconde por nenhum segundo sua raiva com um mundo obviamente injusto, rompendo com praticamente todas as expectativas que o mundo costuma depositar sobre as mulheres.