Opinião: Acha que o Oscar não faz mais clássicos? A verdade é que nunca fez
Se você costuma engrossar o coro daqueles que acreditam que há muito tempo o Oscar já não premia mais bons filmes, que os vencedores recentes da estatueta não têm mais qualidade suficiente para se tornar clássicos, e que bom mesmo era antigamente, quando filmões como "... E o Vento Levou" ganhavam a estatueta de melhor filme, está na hora de rever seus conceitos.
A verdade é que a Academia de Hollywood foi sempre uma “geradora de clássicos” errática, para dizer o mínimo. Se olharmos para a lista de indicados e vencedores na categoria de melhor filme nas 89 edições até hoje, há mais títulos cultuados entre os perdedores do que entre os premiados --até porque alguns anos produziram vários filmes excepcionais, e só um podia ganhar, como aconteceu em 1940, quando “O Mágico de Oz”, “No Tempo das Diligências” e “O Morro dos Ventos Uivantes” perderam para “...E o Vento Levou”.
Mas vamos olhar para as edições mais recentes, de 2012 para trás (afinal, um clássico precisa sobreviver ao tempo para ser um clássico, e temos que tomar uma distância de alguns anos, certo?). OK, podemos concordar que o musical mudo “O Artista”, que levou o prêmio principal da noite naquele ano, não é exatamente o filme mais memorável, mas entre os indicados estava “Meia-Noite em Paris”, que conquistou um lugar cativo no coração de uma boa parcela do público.
Em 2011, a situação não foi muito diferente: “O Discurso do Rei”, um longa bem quadradão que ninguém mais lembra, levou a estatueta de melhor filme, mas a lista de finalistas incluía títulos que são muito lembrados até hoje, como “Cisne Negro” e “Toy Story 3”.
“Up: Altas Aventuras”, repetiu em 2010 a mesma sorte de “Toy Story 3”, e mesmo assim ainda é mais lembrado do que o vencedor “Guerra ao Terror”. Aliás, vale aqui um parênteses sobre as animações: é o gênero que rendeu alguns dos maiores clássicos do cinema até hoje (“Branca de Neve e os Sete Anões”, “O Rei Leão”, “Aladim”, "Toy Story" etc.), mas nunca foi levado muito a sério pela Academia e até hoje não recebeu o prêmio principal do Oscar.
O que torna um filme clássico?
Mas, afinal, como um filme se torna um clássico? Não existe uma regra matemática para isso, mas duas características são bem marcantes: apelo com o público e resistir ao tempo.
O apelo tem a ver com a capacidade de um filme fazer alguém querer assisti-lo de novo, de novo e de novo ao longo dos anos. Eu, por exemplo, nunca me canso de ver “Os Caçadores da Arca Perdida” (que, aliás, foi indicado ao Oscar em 1982 e perdeu para “Carruagens de Fogo”), um filme que o meu pai fez questão de me apresentar, já vários anos depois da estreia. E apesar de os efeitos especiais não parecerem muito impressionantes hoje em dia, a passagem do tempo não me fez achar o filme menos divertido, a interpretação de Harrison Ford menos charmosa e o ritmo da trama menos envolvente.
O que nos leva ao segundo ponto: é uma produção que resistiu ao teste do tempo, e que continua alcançando seus propósitos mesmo muitos anos depois (no caso era divertir, mas poderia ser emocionar, expor um drama ou uma questão universal, ou mesmo mostrar o domínio do cineasta sobre as ferramentas cinematográficas).
Para superar o teste do tempo, um filme em geral precisa também ter um certo grau de qualidade, com características como uma direção marcante (o ponto de vista forte e coeso de Francis Ford Coppola que permeia "Apocalypse Now", por exemplo), atuações fortes (a química inesquecível de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart em "Casablanca" cai nessa categoria), fotografia bem trabalhada (que resulta em cenas icônicas, como o assassinato no chuveiro de “Psicose”) e som memorável --incluindo a trilha sonora (você com certeza consegue identificar imediatamente o "tantantantan" de "Tubarão", por exemplo), música-tema ("You Never Can Tell" te faz pensar em Uma Thurman e John Travolta dançando em "Pulp Fiction") e diálogos e frases que as pessoas ainda repetem, como “hasta la vista, baby”, de “O Exterminador do Futuro 2”, “eu sou o rei do mundo!”, de “Titanic”, ou “continue nadando”, de “Procurando Nemo”.
E isso não tem necessariamente a ver com as bilheterias (“Cidadão Kane” foi um fracasso nesse aspecto: custou US$ 840 mil e rendeu só US$ 1,5 milhão), nem com a recepção da crítica na época (se dependesse disso, “O Iluminado” teria caído no esquecimento), nem mesmo de capturar o espírito do momento.
Um filme que cai nesta última categoria, aliás, que está muito ancorado no seu próprio tempo, tem grandes chances de envelhecer mal porque "é difícil que ele ainda pareça atemporal 10 anos depois --na verdade, pode muito bem parecer datado", como bem pontuou o crítico Bob Mondello, da NPR, em uma reportagem sobre o tema.
"Crash - No Limite" é um exemplo disso. Elogiado na época, o filme que bateu "O Segredo de Brokeback Mountain" no Oscar hoje é criticado por apresentar questões raciais complexas sem nenhuma sutileza, e com personagens muito estereotipados.
De qualquer maneira, é difícil saber se um filme vai ou não se tornar um clássico até que ele tenha se tornado um, alguns anos depois, o que talvez explique a sensação de que a produção recente não se enquadra nesse patamar, sejam vencedores do Oscar ou não.
Os grandes perdedores
Outro ponto a se considerar: o fenômeno de grandes filmes perderem o Oscar para produções menos notáveis já acontecia nos primeiros anos dos prêmios da Academia. “Rebecca: A Mulher Inesquecível” pode até ser um filme marcante de Alfred Hitchcock, mas o verdadeiro clássico de 1941 foi “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin, que ficou de mãos abanando, apesar de ter uma das cenas mais icônicas do cinema do século 20, em que o personagem-título brinca com um enorme globo terrestre.
E você por acaso lembra de “Como Era Verde o Meu Vale”? Pois é, foi o filme que “roubou” em 1942 a estatueta de melhor filme de “Cidadão Kane”, um título que até hoje figura no topo de listas de melhores filmes de todos os tempos.
A lista de “grandes perdedores” é longa, vem desde aquela época até hoje e inclui filmes como “O Mágico de Oz” (1940), “Os Dez Mandamentos” (1957), “Cleópatra” (1964), “Laranja Mecânica” (1972), “O Exorcista” (1974), “Tubarão” (1976), “Taxi Driver” (1977), “Guerra nas Estrelas” (1978), “Apocalypse Now” (1980), “Touro Indomável” (1981), “E.T. - O Extraterrestre” (1983), “Ghost - Do Outro Lado da Vida” (1991), “Pulp Fiction - Tempo de Violência” (1995), “O Sexto Sentido” (2000), “O Segredo de Brokeback Mountain” (2006), “Avatar” (2010), “Django Livre” (2013) e "Mad Max: Estrada da Fúria" (2016), entre outros.
Sem falar nos clássicos que nem chegaram a receber uma indicação como melhor filme, como "O Iluminado", "Blade Runner" e mesmo "Batman: O Cavaleiro das Trevas".
Até é possível argumentar que, em alguns períodos, a Academia acertou a mão e premiou os filmes que ficariam marcados na história do cinema, como nos anos 1970, quando teve entre os vencedores “Perdidos na Noite” (1970), “O Poderoso Chefão” (1973), “O Poderoso Chefão 2” (1975), “Um Estranho no Ninho” (1976), “Rocky, um Lutador” (1977), “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1978) e “O Franco-Atirador” (1979).
Mas, por outro lado, algo parecido aconteceu recentemente, nos anos 1990: a lista de premiados daquela década teve “Dança com Lobos” (1991), “O Silêncio dos Inocentes” (1992), “A Lista de Schindler” (1994), “Forrest Gump - O Contador de Histórias” (1995), “Coração Valente” (1996) e “Titanic” (1998). Ou seja, várias produções que podem ser consideradas clássicos modernos levaram a principal estatueta para casa.
E seja nos anos 1970 ou nos 1990, esses longas foram premiados porque já eram grandes filmes, e não se transformaram em clássicos simplesmente por ganharem um Oscar.
Embora as duas coisas às vezes coincidam, a verdade é que nunca houve uma relação direta entre um filme ganhar o Oscar e se tornar um clássico, porque as características necessárias para cada uma dessas conquistas são bem diferentes.
As regras do Oscar
Além disso, precisamos examinar com certa cautela a ideia de que a Academia premia necessariamente os melhores filmes de cada ano.
Desde os primórdios do Oscar, em 1929, as campanhas sempre tiveram um peso bem significativo na escolha dos prêmios. Nas primeiras edições, os vencedores eram escolhidos por apenas cinco membros de um comitê de juízes, e “comprá-los” para garantir uma estatueta não era muito difícil. Diz a lenda que foi isso que a atriz Mary Pickford fez em 1930, para garantir uma indicação por “Coquete”, convidando-os para tomar chá na enorme propriedade que dividia com o marido Douglas Fairbanks. O “mimo” fez com que a Academia abrisse a votação para todos os membros, para tornar mais difícil a manipulação.
Ainda assim, o número menor de membros votantes nas primeiras décadas talvez explique porque era um pouco mais comum (mas não muito) que o gosto da Academia coincidisse com o do público: num grupo formado por menos de 800 pessoas, a influência da opinião pública (e da grana colocada pelos estúdios nas campanhas) com certeza era mais decisiva do que nos atuais mais de 7 mil membros, embora ela continue existindo.
As campanhas para ganhar a simpatia dos eleitores são até hoje uma parte importante da temporada pré-Oscar, com os estúdios gastando fortunas para garantir que seus filmes sejam vistos pelos votantes e para promover encontros entre suas estrelas e os membros da Academia.
Até para minimizar essa influência, a Academia realizou diversas mudanças no modelo de votação ao longo dos anos, e a mais recente pode ter sido decisiva para criar essa sensação de que não temos mais grandes filmes no Oscar.
Desde 2009, não é simplesmente o filme mais votado por todos os membros que ganha a estatueta de melhor filme. O vencedor é escolhido por um sistema preferencial, em que cada eleitor vota em cinco filmes em ordem de preferência. O voto em primeiro lugar tem mais peso do que em segundo e assim por diante, mas uma regra garante que quem decidir votar em primeiro lugar em um filme que não tem a menor chance de ser indicado não vai perder seu voto: para todos os filmes que receberam menos votos como primeira opção, a Academia passa a computar o filme listado em segundo lugar na cédula. O mesmo processo vale para as indicações e para o resultado final.
O objetivo dessas regras é tentar alcançar um equilíbrio entre filmes de grandes estúdios (ou seja, com mais grana para fazer campanha) e filmes menores e dar espaço para um consenso. Acontece que o processo acaba privilegiando filmes que aparecem mais como segunda ou terceira opção nas cédulas, em vez de realmente premiar as produções que mais despertaram amor e ódio e fizeram barulho naquele ano.
Especialmente em anos com muitos candidatos fortes, os votos da primeira opção acabam se pulverizando e a segunda opção ganha força. Foi provavelmente o que aconteceu com “O Discurso do Rei”, citado no início deste texto, que deve ter recebido pouquíssimos votos como primeira opção, mas acabou batendo “Cisne Negro”, “A Origem”, “A Rede Social” e “Toy Story 3”, que devem ter dividido os votos em primeiro lugar nas cédulas.
É também um sistema que prejudica filmes que causam polêmica ou dividem opiniões, mas muitos clássicos se tornaram clássicos justamente por isso, por fugirem do que é esperado, do que já vinha sendo feito no cinema, ou por apresentarem um ponto de vista controverso ou ousado para a época ("O Grande Ditador", que satirizava Hitler quando os Estados Unidos ainda nem tinha entrado na Segunda Guerra, é um ótimo exemplo disso).
E é exatamente por isso que hoje em dia está um pouco mais difícil ver um clássico em potencial ganhar o Oscar de melhor filme: . Afinal, um filme que já nos deixa com vontade de rever logo depois, que tem diálogos que a gente lembra de cor e uma música tema que não sai da cabeça, dificilmente vai ser a segunda opção em qualquer votação, mesmo no Oscar, com suas regras indecifráveis.
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