Em 1ª viagem internacional, Linn da Quebrada leva sua causa trans a Berlim
“Assustada, insegura e vulnerável”. É assim que Linn da Quebrada se define em sua primeira viagem para fora do Brasil. A cantora está na Alemanha, onde promove no Festival de Berlim o documentário “Bixa Travesty”, em que a ela mesma é a grande estrela.
O filme, dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla, mostra a cantora travesti paulista de 27 anos em sua militância pela causa trans, sobretudo com trechos de seus controversos shows, em que faz performances sexualizadas e mira sua artilharia contra o domínio da mentalidade do “macho branco dominador”. Mas o longa também traz a artista em cenas de seu cotidiano, em conversas rotineiras (ainda que politizadas) com amigos.
A primeira sessão pública foi no domingo (18) à noite, na mostra Panorama, com calorosos aplausos ao final.
“Bixa Travesty” mostra uma Linn sempre expressiva e autoconfiante, mesmo em momentos difíceis (como quando se tratou contra um câncer no testículo). Quem a vê na tela pode até se surpreender que uma figura tão altiva possa ter algum traço da tal “vulnerabilidade” que ela confessa sentir em sua primeira saída do país natal. “Mas também estou muito porosa para receber essa nova experiência”, explicou a cantora, em entrevista ao UOL algumas horas antes da sessão de estreia mundial do filme.
“Não tenho medo [da sessão de estreia], mas o que angustia é não saber a maneira como vão recebê-lo. Ao mesmo tempo que é [um sentimento] muito pessoal, é muito político que isso esteja acontecendo. Acho fundamental que questões que o filme traz sejam discutidas, então carrego neste momento todo esse mix de sensações comigo”, disse a artista.
A ansiedade já vinha desde antes de embarcar: foi ainda no Brasil, com muito cuidado (e o auxílio de um stylist), que ela escolheu o pomposo vestido branco decotado que usaria na noite da estreia em Berlim. “Fiz isso não foi nem para ‘causar’ com a estética. É porque a nossa imagem também comunica, ela chega antes até do que a gente fala. Nossa estética também é nosso discurso.”
Ao falar, Linn demonstra solidez em suas argumentações; não é uma ativista apenas de frases prontas, como muitas vezes o documentário pode fazer o público pensar. Tem excepcional desenvoltura para a oratória e seu vocabulário mescla desde gírias da periferia paulistana a termos correntes do mundo LGBT, mas incluindo também jargões que, há até poucos anos, eram restritos aos cursos universitários de ciências humanas. (Não é à toa que sua fala é tão bem recebida nesses três grupos).
Da quebrada para o mundo
Linn nasceu na Zona Leste de São Paulo, em família pobre, e passou parte da vida em São José do Rio Preto. Foi por um bom tempo evangélica, mas a religião não lhe trouxe respostas para suas principais indagações, sobretudo a respeito da própria sexualidade. Foi mesmo nas artes que ela se encontrou – mas precisou trilhar uma longa trajetória até sofisticar o próprio discurso e se tornar uma respeitada porta-voz das pautas de grupos sexualmente marginalizados.
“Tenho formação em teatro, mas sempre fui muito curiosa, sempre li muito. Minha fala vem da periferia, da quebrada, das minhas vivências e das pessoas que sempre estiveram próximas a mim. Mas também vem dos livros que eu li – sempre adorei filosofia, literatura. A arte é importante não só porque ela pode reproduzir o meio, mas também porque pode produzir novos meios e realidades”, diz.
Foi na dança e no teatro que passou a se relacionar melhor consigo mesma. “Fui aos poucos me dando o direito da dúvida. E o direito de pensar: ‘Espera aí: e se as coisas não forem exatamente assim? E se não forem desse jeito como estão dizendo para a gente desde sempre?’”, conta a artista.
Hora de questionar
Linn sabe que, ao defender o direito de cada um a questionar os padrões, tem contribuído para a mudança de comportamentos historicamente tidos como imutáveis. “Sou uma das responsáveis por esse ‘vírus da dúvida’. E a partir do momento que você já sabe do que não gostariam que você soubesse, você também é responsável pela informação que você passa. Estamos construindo um momento revolucionário e todos nós somos responsáveis por isso”.
O filme apresentado em Berlim reforça o tempo todo a importância da politização do corpo que Linn tanto insiste em expressar por meio de sua arte. Foi após ficarem impressionados com um dos shows da cantora que os cineastas Claudia Priscila e Kiko Goifman decidiram filmá-la.
“Eu conheci a Linn há três anos, em atuação dela como performer, e depois que eu e o Kiko vimos um show dela, já como Linn da Quebrada, surgiu a ideia de fazer um filme dela”, diz Claudia Priscilla. “Aliás, de fazer um filme ‘com ela’, porque a Linn é a roteirista e teve uma participação criativa ao longo de todo o processo”, explica. O que significa que Linn ajudou a decidir o que iria entrar ou ficar de fora de todo o material filmado.
Também foi a cantora quem sugeriu várias das situações em que aparece improvisando as falas com as amigas. Em um dos trechos, Linn conversa com a ex-colega de teatro Liniker, também trans e outro ícone da politização das causas pró-minorias na atual cena musical brasileira.
Alguns trechos poderão chocar até simpatizantes da causa trans. Há uma cena em que Linn e a mãe, nuas, tomam banho juntas. “Foi uma ideia da Linn, e a gente abraçou na hora”, diz Priscilla. “Achamos bonita e delicada. É um momento de afetividade e amorosidade entre duas pessoas”.
Linn tem noção de que o filme poderá não ser tão bem recebido em ambientes menos progressistas que as salas de Berlim. “O festival não é a única finalidade do filme. É o mesmo intuito que tenho com minha música: uma tentativa de travar diálogo, de diversas maneiras. Eu travo diálogo com as pessoas que encontro na rua, explicando o que eu sou e como gostaria que elas me tratassem. Estou sempre tentando dialogar"
Em seu discurso no filme (e fora dele), Linn defende a união contra o grupo que ela chama de “vocês, homens” ou de "macho". Mas ao personificar seu inimigo, que fique claro: não se refere a aspectos biológicos, mas a uma certa maneira reacionária de pensar.
“Eu digo: 'Mate o macho colonizador que existe em você'. Mas não é biológico, não é sobre ter ou não pau. É sobre um jeito de agir e de se relacionar, é um tipo de atitude. Eu canto minhas músicas para que eu consiga matar em mim atitudes transfóbicas, misóginas, racistas, porque nós não estamos livres do sistema. Nem mesmo eu estou!”
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