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As séries estão obcecadas com a ideia de transferência da mente; por quê?

Montagem "Altered Carbon", "Arquivo X" e "Black Mirror" - Divulgação e Montagem/UOL
Montagem "Altered Carbon", "Arquivo X" e "Black Mirror"
Imagem: Divulgação e Montagem/UOL

Beatriz Amendola

Do UOL, em São Paulo

07/02/2018 04h00

Você pode ser condenado a reviver eternamente um dos piores momentos de sua vida. Ou, por outro lado, morar em uma espécie de paraíso e permanecer jovem para sempre. Você pode acabar preso em uma realidade virtual por tempo indeterminado. Ou você pode levar suas memórias e sua personalidade a corpos totalmente diferentes entre si. Todas são possibilidades de um devaneio que já se tornou parte do cânone da ficção científica: o mind upload, a transferência da consciência humana para o meio digital.

Esse sonho --ou pesadelo, dependendo do ponto de vista-- parece estar mais presente do que nunca no imaginário popular. Entre dezembro e fevereiro, quatro grandes produções da TV internacional o elegeram como tema principal, a começar por "Black Mirror" (Netflix). A série britânica, que em 2016 já havia abordado esse caminho no episódio "San Junipero", dedicou quase inteiramente sua quarta temporada a explorar os terrores da consciência digitalizada. A ela, se seguiram "Arquivo X" (Fox), "Philip K. Dick' Electric Dreams" (Amazon Prime) e "Altered Carbon" (Netflix), que estreou na última sexta-feira (2).

Mas por que esse tema tomou conta da TV nos primeiros meses de 2018? Novo, ele não é. A literatura já explora há mais de 50 anos as possibilidades do upload da mente. Em "A Cidade e as Estrelas", de 1956, Arthur C. Clarke criou uma cidade cujos habitantes tinham suas mentes armazenadas por um grande computador central; "Neuromancer", um dos mais premiados romances cyberpunk, foi publicado em 1984 pelo então estreante William Gibson. E a ideia ganhou espaço na TV e no cinema entre os anos 1980 e 1990, em produções como "Star Trek", "Tron" e "Ghost in the Shell".

O que acontece é que, em 2018, nunca estivemos tão intimamente ligados ao digital. "A ficção científica é sempre muito sensível àquilo que se mostra como um problema recorrente", diz Christian Ingo Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP. "[A transferência da consciência] é uma fronteira da pesquisa em neurociência, e tem outro motivo que é a tecnologia virtual cada vez mais presente na nossa vida. Essa ideia de que a vida vai se traduzindo em informações, resquícios materiais ou fotos, está no horizonte do futuro próximo para a gente".

Fabro Stiebel, diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, concorda. "As pessoas querem compreender a tecnologia em uma sociedade em que vivem muito próximas dessa tecnologia o tempo todo", diz. "Quanto mais tangível for a tecnologia, mais pessoas estão falando sobre ela e é melhor para todo mundo. A tecnologia precisa ser desmistificada para que a gente consiga regulá-la, para que a gente consiga se apropriar dela. E o filme tem um papel muito importante nisso. Que difícil seria pensar em um robô, por exemplo, se as pessoas não conseguissem explicar o que é um robô".

Também nunca se falou tanto das possibilidades do upload da mente quanto nos últimos anos. Iniciativas como o Google Brain e o Blue Brain Project tentam registrar e simular a complexa atividade dos neurônios cerebrais --o que seria um passo importante para, eventualmente, se alcançar a transferência de consciência.

Por enquanto, porém, poucos trabalham com ela como seu objetivo final. O mais notório é o bilionário russo Dmitry Itskov, que decidiu dedicar seu tempo e fortuna à causa por meio da 2045 Initiative, projeto que pretende alcançar o mind uploading e, consequentemente, a imortalidade, até o ano de 2045. "Nos próximos 30 anos, farei com que todos nós possamos viver para sempre", declarou à BBC, em 2016, o empresário, que disse ainda ter "100% de certeza" no sucesso da empreitada.

Vida eterna e transcendência

Cena de "Altered Carbon" - Divulgação - Divulgação
A consciência humana fica em um cartão de memória em "Altered Carbon"
Imagem: Divulgação

A incansável busca pela ideia da vida eterna e suas implicações ajudam a explicar, em parte, o redescoberto fascínio pelo tema. Não por acaso, é uma questão central na série "Altered Carbon", situada em um mundo no qual a consciência humana é guardada em cartões de memória e os corpos são trocáveis --o que torna os endinheirados praticamente imortais.

"Nós todos somos atraídos pela ideia de viver para sempre e ver o que vai acontecer com a raça humana", diz ao UOL o ator Joel Kinnaman, que protagoniza o noir cyberpunk à la "Blade Runner" da Netflix. "É divertido pensar como vai ser o futuro, e essa é uma questão que todos nós nos perguntamos", completa sua colega Martha  Higareda.

Para a atriz Renee Elise Goldsberry, que na série vive uma ativista contra a digitalização das consciências, a ficção científica da TV está refletindo um anseio humano. "Estamos implorando aos inovadores para que façam coisas que nos tornem saudáveis, nos façam viver mais, ter mais qualidade de vida. Queremos isso desesperadamente, mas fazemos essas séries e filmes em que expomos nossa inquietação com a tecnologia porque sentimos, em algum nível, que há uma ameaça na dependência de algo que não é organicamente nosso".

A fantasia do sobre-humano --e tudo o que ele pode trazer, além da imortalidade-- também alimenta o fascínio com a possibilidade da consciência digital. "Tem a questão do superpoder, de você transcender o humano. É uma curiosidade, como você ter curiosidade sobre o espaço e aí você tem vários filmes sobre o espaço. Essa coisa que a gente não explica e projeta", analisa Stiebel.

De acordo com Dunker, do Instituto de Psicologia, essa transcendência da ficção está ligada à capacidade se reinventar, algo que se tornou muito valorizado na nossa sociedade. O mundo de "Altered Carbon", por exemplo, traz uma versão radical disso: uma pessoa pode ganhar uma nova encarnação com outro gênero, outra idade e até outra etnia.

"Em um clima cultural em que isso [a transformação] é quase um ideal, vai surgir a pergunta sobre o que resiste em mim, apesar de todas as transformações que eu posso criar. E o que eu não posso mudar? Isso se torna uma pergunta tentadora, uma pergunta que estimula a nossa imaginação, que leva a gente a inventar experimentos mentais e ficcionais, mas também experimentos reais", diz Dunker.

Se na ficção a transferência de consciência é uma realidade já bem estabelecida --e com consciências funestas--, na vida real ela ainda está bem longe de se concretizar. "É uma ideia de ficção, que dependeria de coisas como computador quântico, dependeria de avanços tecnológicos que vão criar consequências que a gente não consegue pensar. Estamos um passo antes de esse processo poder se tornar uma realidade", atesta Dunker.

Alerta de spoiler!

Como as séries retrataram a transferência das consciências nestes últimos meses:

"Altered  Carbon"

Joel Kinnaman em cena de "Altered Carbon", da Netflix - Katie Yu/Netflix - Katie Yu/Netflix
Imagem: Katie Yu/Netflix

300 anos no futuro, a a consciência é armazenada em cartões de memória, os “cartuchos”; por isso, os corpos são trocáveis e passam a ser chamados de "capas". Para realmente matar uma pessoa, é necessário destruir o seu cartucho. Sem isso, ela pode retornar à vida em outra capa. 

"Black Mirror"

Rolo Haynes (Douglas Hodge) recebe Nish (Letitia Wright) em seu Black Museum - Jonathan Prime/Netflix - Jonathan Prime/Netflix
Imagem: Jonathan Prime/Netflix

Em "Black Museum", sexto episódio da quarta temporada da série, uma mulher em coma tem sua consciência transferida para a mente do marido e, depois, para um brinquedo. E, em outra história do mesmo capítulo, um homem injustamente condenado à morte tem sua consciência digitalizada e é colocado para reviver, diariamente, seu sofrimento na cadeira elétrica. 

Já "San Junipero", na terceira temporada, se passava em um paraíso virtual para onde as pessoas à beira da morte tinham suas consciências transferidas. 

"Arquivo X"

Langly voltou na 11ª temporada de "Arquivo X" - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

No segundo episódio da 11ª temporada da série, que estreou em janeiro, Richard Langly volta dos mortos (de certa forma) para contatar Mulder e Scully. Ele de fato morreu, mas teve sua consciência transferida para uma simulação onde, segundo ele, vários cientistas estavam sendo forçados a trabalhar em possibilidades de colonização espacial.  

"Electric Dreams"

Anna Paquin em cena do episódio "Real Life", da série da Amazon "Electric Dreams" - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Na série da Amazon, o episódio "Real Life" brinca com uma variação da transferência de consciência. No caso, a mente de uma policial acaba presa em uma realidade virtual.