Love and Rockets: HQ que há 35 anos "previu" realidade dos EUA sai no país
"Em 2017, a União Soviética vai se tornar capitalista, mas, para não serem superados, os EUA vão afundar no fascismo". A profecia é de uma bruxa, personagem da graphic novel "Sopa de Lágrimas", de Gilbert Hernandez. Quando a história foi publicada pela primeira vez nos anos de 1980, o cartunista californiano não poderia imaginar que organizações fascistas como a Ku Klux Klan fossem de fato voltar às manchetes norte-americanas este ano.
"Na verdade, estas ideias sempre existiram no país. A única diferença é que agora estão expostas na mídia e na internet", diz Hernandez, que se juntou à resistência a Donald Trump, participando de manifestações e desenhando cartazes que ridicularizam o presidente, acusado de estimular ideologias de extrema direita. O artista, de família mexicana e que hoje mora em Las Vegas, também escreveu uma história para o "The Village Voice" sobre o polêmico muro entre os Estados Unidos e o México, uma das principais promessas de campanha de Trump.
Este ativismo não é novidade na trajetória de Hernandez, que fez parte da cena punk de Los Angeles. Sua revista "Love and Rockets", criada em colaboração com os irmãos Jaime e Mario, começou como um fanzine xerocado em 1981, anos antes do inglês Daniel Ash adotar o nome para sua banda.
Além da atitude contestadora e ética faça-você-mesmo de suas raízes, os quadrinhos de Hernandez frequentemente incluem temas políticos, como "Diastrofismo Humano", história-título da coletânea que chega agora ao Brasil. Nela, a jovem Tonantzin torna-se politicamente consciente, com consequências devastadoras, enquanto um assassino serial aterroriza os habitantes de Palomar, uma remota cidadezinha latino-americana.
Lançada há mais de 35 anos, "Love and Rockets" é reconhecida hoje como uma das revistas em quadrinhos mais influentes de todos os tempos. Em julho deste ano, Gilbert e Jaime Hernandez foram induzidos ao prestigiado Will Eisner Hall of Fame, durante a convenção Comic-Con, em San Diego. Apesar disso, apenas uma pequena fração da obra dos Hernandez tem versão brasileira.
A editora Veneta está tentando tirar este atraso, focando no trabalho de Gilbert: "Diastrofismo Humano" é a segunda parte de uma trilogia iniciada com "Sopa de Lágrimas", lançada no ano passado. O livro inclui histórias desenhadas em um período de quase dez anos (1987 a 1996), mas ainda assim faz sentido como um volume avulso, oferecendo a novos leitores uma ótima oportunidade de se familiarizar com o universo de Hernandez.
UOL - Você publicou "Sopa de Lágrimas" e "Diastrofismo Humano" nos anos 80 e 90. É estranho pensar que muitos brasileiros estão lendo o material pela primeira vez agora?
Gilbert Hernandez - Vira e mexe eu recebo cartas de fãs brasileiros, eles entendem "Love and Rockets". Eu fico feliz que as pessoas estejam lendo os meus livros, seja uma versão traduzida ou o original em inglês. Muitas não tinham nem nascido quando as histórias foram publicadas e se identificam com algo que eu desenhei há muito tempo. Parece que não sai de moda.
Em "Sopa de Lágrimas" a bruxa faz uma previsão para o ano de 2017, que parece se aproximar da realidade de hoje.
(Risos) Eu só chutei um número aleatório, sei lá o que estava pensando, mas aconteceu, né?
Logo após a eleição de Donald Trump você escreveu a história "Wall of Shame" ("Muro de Vergonha"), em que um imigrante mexicano trabalha na construção do muro na fronteira dos Estados Unidos e México. Como surgiu esta ideia?
O "The Village Voice" pediu para eu criar um universo paralelo no qual o Trump não ganhou a eleição. Então o personagem está só sonhando que tem que construir o muro para sustentar a família, mas quando acorda não existe muro, é uma realidade sem Trump.
O que você acha da situação atual? Você participou de protestos anti-Trump em Las Vegas; como está reagindo às notícias?
Todo dia é uma novidade, um novo escândalo. Para mim isso só mostra o quão corrupto é o sistema. O próprio fato de ele ser presidente é culpa do colégio eleitoral. Eles queriam o Trump, colocaram ele lá e agora não conseguem tirar. Ele diz as coisas mais idiotas e continua lá, não vai sair. É um cara rico com um corte de cabelo horroroso. Tinha um programa de TV. As pessoas adoram tudo isso.
Tanto você quanto seu irmão Jaime incluem referências ao Zé do Caixão nas suas histórias. Qual é a conexão entre o personagem e a "Love and Rockets"?
Eu assisti "À Meia Noite Levarei Sua Alma" há muitos anos e me impressionei com as imagens. É um filme sem censura, especialmente os motivos religiosos. Quer dizer, ele tira a coroa de espinhos de uma imagem de Jesus e usa para espancar um homem. Ao mesmo tempo tem um lado meio "Os Três Patetas", como quando ele aponta dois dedos para a câmera antes de arrancar os olhos de um cara. Eu e o Jaime ficamos impressionadíssimos. Aí o Mike Vraney [fundador da distribuidora alternativa Something Weird Video, que morreu em 2014] adquiriu os direitos e logo todo mundo começou a falar do "Coffin Joe" ["Zé do Caixão" em inglês]. Eu dizia: "A gente assistiu faz tempo". Quando ele veio aos Estados Unidos, eu tive que ir lá tirar uma foto com ele.
O que você acha da cena de quadrinhos alternativos atualmente?
Hoje as coisas estão mais estabelecidas. Quem quiser desenhar quadrinhos já tem um ponto de partida. Antes você podia até desenhar, mas não tinha onde mostrar. Agora você pode ir às convenções e vender os seus fanzines. É o que faz a minha filha Natalia [Hernandez, cartunista e fanzineira]. As pessoas querem ver os quadrinhos dela por ser uma pessoa jovem produzindo um gibi novo. Há muito mais abertura.
Você acompanha o trabalho de jovens cartunistas? Quem você recomendaria ao público brasileiro?
Tem o Simon Hanselmann [autor da graphic novel "Megahex", que chegou à lista dos mais vendidos do jornal "New York Times"]. Ele é muito bom. Algumas coisas que ele desenha são escandalosamente engraçadas. Na verdade ele me inspirou a lançar a "Bubbler", um projeto paralelo com o meu material mais ousado e controverso, que não cabe na "Love and Rockets".
Na premiação em San Diego você disse que é jovem demais para entrar para o Will Eisner Hall of Fame. O que este reconhecimento significa neste momento da sua carreira?
Fico feliz por ser reconhecido, mas para mim é um processo que ainda está em andamento. Sei que são 35 anos, e o fato de ainda desenhar gibis que as pessoas querem ler é algo muito bom. Mas sinto que estou no meio do caminho, tentando ainda chegar ao meu melhor trabalho.
SERVIÇO
"Diastrofismo Humano", de Gilbert Hernandez
Editora Veneta
256 páginas
Preço: R$ 89,90
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