HQ revê certezas do cristianismo e levanta polêmica sobre Maria
O quadrinista canadense Chester Brown, 57, se lembra do momento em que começou a duvidar das histórias bíblicas narradas por sua mãe antes de dormir. Ele diz que tinha entre 10 e 12 quando encontrou uma cópia do livro "The Passover Plot", do escritor britânico Hugh Schonfield, e passou a questionar os enredos contidos na Bíblia. Na obra publicada em 1965, Schonfield sugere que Jesus arrumou uma forma de ser drogado na cruz para que parecesse estar morto e escapasse do destino trágico daqueles condenados à crucificação.
"Aquela história fez mais sentido para mim do que a história que meus pais aparentemente acreditavam, que Jesus morreu na cruz e milagrosamente retornou dos mortos", conta o artista em entrevista ao UOL. Segundo Brown, a teoria mudou completamente suas percepções sobre o cristianismo.
A mais nova HQ de Brown publicada em português é fruto direto desse momento de iluminação. "Maria Chorou aos Pés de Jesus - Prostituição e Obediência Religiosa na Bíblia" (WMF Martins Fontes) defende a tese que a mãe de Cristo era uma prostituta.
O quadrinista usa como argumento quase 100 páginas de bibliografia sobre o assunto e evidências supostamente escondidas pelo apóstolo Mateus em seu Evangelho. Brown defende a ideia de que tanto histórias do Velho e do Novo Testamento quanto parábolas narradas por Jesus pregam a prostituição como uma profissão nobre e que Deus prefere seguidores que o questionem a fiéis fundamentalistas.
A edição brasileira do quadrinho chega às livrarias quase cinco anos após a obra anterior de Brown, "Pagando por Sexo", trabalho autobiográfico sobre sua vida sexual como cliente assíduo de prostitutas e uma espécie de libelo a favor de maior aceitação das trabalhadoras do sexo e da legalização da prostituição.
Brown defende suas crenças adaptando nove histórias bíblicas. O foco principal está nas relações entre Maria e as protagonistas de outras cinco histórias narradas por Mateus em seu Evangelho. O quadrinista cita o argumento da escritora Jane Schaberg no livro "The Illegitimacy of Jesus", publicado nos anos 80, que vê um indício entre a presença dessas mulheres que ‘se comportaram mal’ e a genealogia de Jesus.
“Eu concordo com a Schaberg que algo estava sendo indicado sobre a Maria, mas eu discordo em relação ao que seria esse indício”, diz Brown, lembrando a tese da Schaberg de que Jesus seria fruto de um estupro. “Nenhuma das outras mulheres foi estuprada. Para mim parecia óbvio que a genealogia está apontando que a Maria era uma prostituta ou no mínimo havia feito sexo em troca de um benefício material”, conta.
Dentre as adaptações presentes no livro constam a tragédia de Caim e Abel, a história da viúva Tamar, o romance de Betsebá com o rei Davi e a unção de Jesus por Maria Betânia. “A palavra cristo significa ‘aquele que foi ungido’ e Jesus foi feito cristão por uma prostituta - uma ideia que me passou a soar muito importante em meio às outras conexões que estava fazendo”, conta o autor.
As 292 páginas em preto e branco do quadrinho não são irônicas ou satíricas em relação às escrituras bíblicas. Da mesma forma, Brown não sugere uma teoria conspiratória com ares de blockbuster no estilo dos livros do escritor Dan Brown. "Maria Chorou aos Pés de Jesus" tenta ser o mais fiel possível ao texto original em prol da defesa de seu ponto. O padrão fixo de quatro quadros por página sem qualquer excesso gráfico reforça a tentativa de Brown de permanecer fiel aos enredos presentes na Bíblia.
O autor da HQ diz que planejava o livro sobre o assunto há anos, mas demorou para encontrar o formato ideal. “Não me soava interessante criar uma história ficcional sobre como a vida de Maria teria sido caso ela fosse uma típica prostituta judia do primeiro século”, diz. Segundo o artista, ele chegou ao formato final em 2014, ao ler interpretações sobre como as parábolas de Jesus eram pró-prostituição. “A postura dele é coerente com essas evidências presentes no Evangelho de Mateus, então o livro surgiu para mim como uma sequência de adaptações bíblicas. Fiquei muito empolgado e foi difícil me conter”.
Hoje Brown é um dos quadrinistas mais aclamados e respeitados de sua geração, sendo equiparado a vanguardistas como Chris Ware, Charles Burns e Daniel Clowes. A repercussão de seu trabalho, no entanto, é potencializada pelos temas que costuma abordar. Em defesa de seu livro mais recente publicado em português, ele cita contradições presentes na própria Bíblia para questionar críticas feitas à HQ.
“Muito do que Jesus disse soa contraditório”, argumenta Brown. “Jesus começou como um pregador raivoso e apocalíptico e, por razões desconhecidas, ele mudou sua atitude e começou a pregar sobre um Deus amoroso e misericordioso. A quais pregações cada pessoa responde depende da forma como cada um vê o mundo”, afirma.
Para Brown, o Jesus apocalíptico tende a ter mais apelo para pessoas intolerantes, assim como o Jesus espiritual e mais amoroso responde melhor para pessoas mais abertas. Na avaliação do quadrinista, a postura de fundamentalistas em relação a Jesus reflete muito dos problemas decorrentes de qualquer fé cega. “Fundamentalistas não querem aceitar que as ideias de Jesus provavelmente mudaram com o passar do tempo e ficaram mais profundas. Eles tentam conciliar o irreconciliável”, diz o autor.
O artista cita sua própria interpretação de Cristo para exemplificar sua tese. “Na minha opinião ele ficou extremamente sábio, mas ele não começou dessa forma e no começo disse algumas coisas bem estúpidas. É preciso avaliar suas palavras, assim como é preciso fazer isso com as palavras de qualquer pessoa”.
No entanto, Brown acredita que mesmo com o conteúdo polêmico de "Maria Chorou aos Pés de Jesus", o livro foi alvo de menos críticas negativas que seu trabalho anterior. Segundo o autor, muito interpretaram "Pagando por Sexo" como uma defesa cínica pelos direitos das prostitutas por ele estar se beneficiando como alguém que paga por sexo. “Como eu fui muito sincero em relação às minhas crenças religiosas em "Maria Chorou", as pessoas talvez possam achar que estou escrevendo do coração. Elas podem acreditar que as minhas interpretações sejam improváveis ou erradas, mas a minha sinceridade é mais óbvia nesse livro”, cogita.
De acordo com o quadrinista, mesmo a postura dos críticos foi diferente quando comparada a "Pagando por Sexo". “As pessoas usaram o livro como uma desculpa para expressar suas opiniões em relação à prostituição e eventualmente ignoravam o que eu escrevi”, opina sobre a repercussão da obra sobre sua vida sexual. “No "Maria Chorou" os críticos ficaram mais envolvidos com as ideias que eu estava apresentando, mesmo que discordassem delas”, diz.
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