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"Nós, LGBT, já fomos crianças e isso incomoda", diz artista acusada de incitar pedofilia

Obras de Bia Leite no "Queermuseu": ?Um trabalho atento e delicado para se conversar sobre infância e violência", explica a artista - Reprodução/Facebook
Obras de Bia Leite no "Queermuseu": ?Um trabalho atento e delicado para se conversar sobre infância e violência", explica a artista Imagem: Reprodução/Facebook

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

12/09/2017 13h32

Um novo debate sobre arte e representatividade tomou as redes sociais após o fechamento precoce da mostra "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", em Porto Alegre, no último fim de semana.

Passado um mês da abertura, uma onda ruidosa de críticas a algumas obras fizeram com que o Santander Cultural antecipasse o fim da mostra. Entre as graves acusações apontadas estavam apologia à zoofilia e profanação.

No entanto, foram as obras "Travesti da Lambada e Deusa das Águas" e "Adriano Bafônica e Luiz França de She-há", da série "Criança Viada", de autoria da cearense Bia Leite, as mais contestadas. As gravuras coloridas de crianças em poses e trejeitos "não heteronormativos", como a artista define, foram apontadas como ?apologia à pedofilia?.

"Nós, LGBT, já fomos crianças. Esse assunto incomoda", afirmou a artista, em texto enviado ao UOL. "Sou totalmente contra pedofilia e contra abuso psicológico de crianças. O objetivo do trabalho é justamente o contrário. É que essas crianças tenham suas existências respeitadas."

Mas afinal, do que trata a obra?

Apesar de toda a reação, pouco se falou do contexto da obra, que ganhou prêmios e chegou a ser exposta no "XIII Seminário LGBT", na Câmara dos Deputados em Brasília, em 2016. O evento anual chegou a irritar a bancada evangélica e foi ameaçada por Eduardo Cunha, até então presidente da Câmera.

Bia se baseou em fotos de um antigo tumblr chamado "Criança Viada", que recebia imagens de internautas quando crianças. A intenção, ela explica, era "celebrar esses traços, que durante toda a infância foram motivo de xingamentos e violência".

"Nas telas expostas todas as crianças sorriem e o texto enaltece e empodera essas crianças desviantes -- finalmente! -- chamando-as de deusas ou nomes de super-heroínas", observa.

"A linguagem da pintura também nos insere na História com orgulho e força, diante de uma sociedade que nos quer invisíveis. Nós, LGBT, já fomos crianças. Esse assunto incomoda porque nós nunca viramos LGBT, nós sempre fomos. Todos nós devemos cuidar das crianças, não reprimir a identidade dela nem seu modo de ser no mundo, isso é muito grave."

Para ela, a exposição "Queermuseu" tinha caráter educativo ao propor um exercício poético sobre o bullying. "Um trabalho atento e delicado para se conversar sobre infância e violência, abrindo vias de diálogo para a prevenção de futuras agressões", defende a artista.

“Cena de Interior II”, da celebrada artista carioca Adriana Varejão - Divulgação - Divulgação
“Cena de Interior II”, da celebrada artista carioca Adriana Varejão
Imagem: Divulgação

As representações das crianças nas obras são acompanhadas de legendas com gírias do mundo gay, escritas pelo jornalista Iran Giusti, criador do tumblr e hoje coordenador da Casa 1, centro de acolhimento LGBT em São Paulo.

Pelo Facebook, ele lamentou a repercussão: "As frases que ilustram as obras da Bia são minhas e me doeu pra c... ver algo que eu escrevi, que foi tão lindamente entendido por anos, acabar sendo colocado como apologia à pedofilia por tanta gente inconsequente e desinformada".

Outras obras

Tão atacada quanto o trabalho de Bia Leite, a tela "Cena de Interior II", da celebrada artista carioca Adriana Varejão, foi enquadrada pelos críticos como uma obra que promove a zoofilia.

A tela mostra cenas de sexo entre figuras femininas e masculinas e entre um homem e uma cabra. A artista já havia comentado que a compilação de práticas sexuais existentes é uma reflexão adulta sobre o tema.

"Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva", obra de Fernando Baril - Divulgação - Divulgação
"Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva", obra de Fernando Baril
Imagem: Divulgação
Já a obra "Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva", tela de 1996 do gaúcho Fernando Bari, representa Jesus com inúmeras pernas e braços e reverbera "pela superfície da pintura, exibindo objetos de toda ordem nas mãos e pés, muitos deles relacionados à história da arte e à cultura pop", como explica o curador Gaudêncio Fidelis em texto do catálogo do "Queermuseu". 

No vídeo que deu origem à manifestação contrária à exposição, blogueiros do MBL (Movimento Brasil Livre) apontaram que a obra "escarneava Cristo".

Entidades de defesa dos direitos LGBT criaram um ato em repúdio à decisão do banco Santander. A manifestação está marcada para esta terça-feira (12), às 16h, na Rua 7 de Setembro, onde fica localizado o Santander Cultural, que sediava a mostra.