Obra-prima das HQs sobre o tempo chega ao Brasil após 25 anos de produção
As 304 páginas da história em quadrinhos "Aqui" (Cia das Letras) têm o mesmo enquadramento. As décadas mais recentes retratadas no livro mostram o canto de uma casa de Nova Jersey, a cerca de 45 minutos de Nova York. Estão lá sofás, porta-retratos e lareiras, decoração que muda com a passagem dos anos e seus moradores inconstantes. São mostrados membros de uma mesma família que nascem, crescem, envelhecem e morrem enquanto frequentam aquele local.
Um passado um pouco mais distante mostra a mesma área repleta de árvores e o romance entre dois jovens nativo-americanos. Milhões de anos antes, por ali também passaram dinossauros e num passado ainda mais remoto o mesmo espaço não possuía qualquer forma de vida. No futuro de 2313 a casa também não está lá e a área é examinada por profissionais com máscaras e aparelhos para medir radiação. O artista Richard McGuire diz que o tempo é o personagem principal de sua HQ. "É sobre a passagem do tempo, não sobre personagens e diálogos. O próprio tempo é o protagonista e eu queria ele em ação como um rio revolto", conta o quadrinista em entrevista ao UOL.
A edição de Aqui que chega às livrarias brasileiras saiu nos Estados Unidos em 2014 e desde então virou objeto de culto. "O que McGuire faz nesse canto é comovente e capaz de expandir a nossa mente. Desse único ponto de vista ele viaja no tempo como alguém mexendo em uma caixa de fotografias feitas a partir da mesma câmera imóvel", afirma uma elogiosa crítica publicada no jornal The New York Times. No ano passado, a HQ ficou com a Fauve d’Or, prêmio entregue ao Melhor Álbum do Ano do tradicional Festival de Angoulême, na França. A resenha do livro no jornal britânico The Guardian é assinada pelo quadrinista Chris Ware, gênio dos quadrinhos e autor de obras aclamadas como "Jimmy Corrigan - O Garoto Mais Esperto do Mundo" e "Building Stories". "'Aqui' introduziu uma nova dimensão à narrativa visual que rompe radicalmente com a leitura tradicional de cima para baixo e da esquerda para direita de um quadrinho. Sua estrutura orgânica reverencia não apenas o passado desse meio, mas também indica o caminho do seu futuro", escreveu Ware.
Hoje com 60 anos, McGuire era conhecido por suas capas para a revista New Yorker e por suas ilustrações para os jornais Le Monde e NYT. Diretor de curtas-metragens animados, designer de brinquedos e ilustrador de livros infantis, ele também fez fama nos anos 80 como baixista da banda novaiorquina Liquid Liquid. No entanto, desde 2014, McGuire passou a ser principalmente o autor de "Aqui". "Eu tinha acabado de me mudar para um apartamento em 1988 e estava pensando em quem havia morado lá antes de mim", conta o artista sobre a origem do álbum.
Segundo ele, a ideia de mostrar o canto da sala era permitir que um lado focasse no passado e o outro no futuro. Já o conceito de quadros sobrepostos a outros, aprofundando ainda mais a experiência de viagem no tempo, veio da conversa com um amigo que comentou sobre um sistema operacional de computador, então recém-criado, que ele havia passado a utilizar na época: Windows (janelas, em inglês). "Foi quando ficou claro que eu poderia usar essa estrutura de janelas para mostrar múltiplas perspectivas do tempo simultaneamente", diz o artista.
A ida a uma palestra do também quadrinista Art Spiegelman, autor do clássico "Maus", instigou ainda mais sua vontade de produzir uma HQ. Em 1989 ele produziu a primeira versão de "Aqui", com apenas seis páginas, publicada na revista RAW, editada por Spiegelman. O quadrinho era uma espécie de protótipo para sua versão expandida, produzida ao longo dos 25 anos seguintes e publicada em 2014 pela gigante editorial norte-americana Pantheon. McGuire conta que criou uma enorme linha do tempo em rolos de papéis colados nas paredes de seu estúdio, anotou histórias que queria contar, listou datas, pesquisou sobre o futuro e o passado, leu sobre mudanças climáticas e robôs. Ele diz que se sentia montando um enorme quebra-cabeças. "No começo eu pensei que deveria ser focado em alguns personagens e cheguei a escrever diálogos, mas logo percebi como aquilo estava ficando diferente do original", afirma.
Após decidir que o cerne do livro estava na própria passagem do tempo, ele pensou que seria importante definir o local onde a casa estaria instalada. A versão publicada na RAW era ambientada em uma sala imaginária, mas na obra ampliada ele preferiu se inspirar na casa em que cresceu. McGuire disse ter resistido ao máximo fazer uma obra autobiográfica, mas eventualmente concluiu que sua família precisava ser o coração do livro. Ele passou então a pesquisar sobre a área, as tribos que viveram lá por milhares de anos, os dinossauros que vieram muito antes delas, os movimentos glaciais anteriores a isso tudo e a própria formação do planeta.
"Eu reuni todo tipo de imagens e também busquei muita coisa nos meus álbuns de família. Eu tinha cadernos repletos de informações e historinhas engraçadas que queria incluir", relata o autor. O livro então foi construído de forma a permitir múltiplas leituras, por meio da passagem das páginas, da seleção dos anos, do foco em tramas específicas presentes em diferentes períodos retratados na HQ e da árvore genealógica da família de McGuire.
A formação musical do artista o ajudou a determinar o desenrolar da obra, com o ritmo do quadrinho tendo função semelhante ao de uma trilha sonora. Daí a razão das páginas iniciais vazias, com a ação apresentada de forma lenta e a inclusão de poucos painéis. Depois, o livro ganha velocidade, com a presença de várias janelas sobrepostas. Já o texto ele diz ter elaborado como um poema, tendo todas as falas apenas uma voz, mesmo vindas de várias pessoas.
"O ritmo do foi cuidadosamente concebido, mas a natureza não-linear da história convida o leitor a passear, não é necessária uma leitura de página a página", expõe o quadrinista. "A graça é ver como as coisas se relacionam e fazer conexões à medida que o livro avança, na esperança de que seja revelado cada vez mais a cada releitura", sintetiza McGuire. O autor aprofundou essa experiência na versão eletrônica da HQ, ainda inédita e sem previsão de lançamento em português. "Nela é possível optar por um modo randômico, com os painéis e os cenários se misturando e as novas combinações sugerindo outras conexões. Até eu acabo sendo surpreendido", afirma.
Apesar de suas experimentações na versão eletrônica, ele disse ter estado sempre consciente de que seu trabalho era essencialmente uma HQ. "Não era um filme, não há efeitos sonoros ou música, eu tentei manter ao máximo como uma experiência de leitura. Eu amo livros e não tenho preferência pela versão no papel em lugar da eletrônica. O livro é um meio perfeito, ele não requer nenhuma outra fonte de energia além do seu cérebro", afirma.
McGuire conta que suas primeiras lembranças com quadrinhos já envolviam experimentos relacionados ao que é possível fazer com uma HQ. Ele diz sempre ter gostado do clássico "Peanuts", de Charlez Schultz, mas ainda criança o que mais o impressionava era a série "Nancy", de Ernie Bushmiler, publicada no Brasil como "Tico e Teca", sobre as aventuras de uma garotinha de oito anos em sua vizinhança. "O design era tão simples e forte. Eu também lembro de cortar os painéis e rearranjá-los criando as minhas próprias histórias", conta.
Algumas décadas depois, com "Aqui", McGuire permite que seus leitores tenham uma experiência semelhante à sua brincadeira da infância. Mas seu quadrinho é mais do que um experimento com o formato. O autor diz ver a obra como o reflexo de sua própria percepção da passagem do tempo. "Eu sempre penso na possibilidade de que todas as coisas estejam acontecendo ao mesmo tempo, que o tempo é apenas uma ilusão. Que o tempo como dimensão é como uma luz refratada, apenas uma forma fragmentada de ver os acontecimentos", declara.
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