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Best-seller mistura angústias de adolescentes a seita à la Charles Manson

Capa do livro "As Garotas" de Emma Cline - Divulgação
Capa do livro "As Garotas" de Emma Cline Imagem: Divulgação

Eduardo Graça

Colaboração para o UOL, em Nova York

27/07/2017 16h53

"As Garotas" foi uma das sensações da literatura americana no ano passado. Com a série de crimes praticados por Charles Manson e seus seguidores na Califórnia da virada dos anos 1960 como inspiração, a estreante Emma Cline, 28, contou uma história impressionante sobre a violência mais mundana que cerca a vida de meninas mundo afora.

No livro, a narradora, Evie, volta ao passado para lembrar de sua adolescência nos anos 1960, e os motivos pelo qual, aos 14 anos, a filha de pais separados e em busca de atenção se juntou ao um culto que lembra o de Manson. Cline foca a narrativa na frágil irmandade formada por Evie com as outras mulheres da seita e na comunhão, asfixia e violência comuns nos intensos dias em que se transformava em uma adulta.

Saudada pelos críticos --"Ela foi abençoada pelas musas", disse a "New Yorker"--, best-seller nos Estados Unidos, Emma fechou um contrato de US$ 2 milhões por três livros a serem publicados com uma prestigiada editora americana e vendeu os direitos de "As Garotas", lançado este mês no Brasil pela Intrínseca, para o produtor Scott Rudin. E ainda fala-se na possibilidade de Noah Baumbach dirigir o filme baseado no livro.

Emma, que mora no Brooklyn, em Nova York, conversou com exclusividade com o UOL sobre seu olhar sobre a adolescência das meninas, o boom da chamada literatura para jovens adultos (YA, nos EUA), suas memórias de infância e as particularidades da amizade feminina. “Queria entender a importância da amizade entre mulheres. Temos códigos culturais muito claros para outros tipos de relacionamento, como marido e mulher, pais, mães e filhos, parcerias de trabalho. De alguma forma, a amizade feminina é livre das pressões sociais, toma as mais diversas formas, e me deu enorme liberdade criativa na hora de escrever ‘As Garotas’”.

UOL - O que a fez escrever um livro denso a partir da investigação da adolescência de uma menina?
Emma Cline -
O momento em que as meninas começam a tomar ciência da vida adulta é muito particular. Elas passam a ter consciência de sua sexualidade, o que as faz ficar mais poderosas e fragilizadas ao mesmo tempo. Queria escrever sobre esta experiência específica, assim como sobre se ter raiva de verdade e a sensação de desamparo total, pelos adultos e pelo mundo, que elas, nós, sentimos especialmente neste momento. Eu acho que meninas adolescentes muitas vezes são reduzidas a símbolos ou objetos e raramente se tornam de fato personagens humanos completos na ficção. Foi importante para mim que Evie fosse uma adolescente ambivalente e complicada. Mas nunca, jamais, apenas uma vítima.

Estamos no meio da explosão da chamada, aqui nos EUA, literatura YA (young adults, jovens adultos), voltada para adolescentes. Você acredita que há uma tentativa de se repensar o lugar da menina adolescente na cultura pop? E crê que “As Garotas” estabelece um diálogo com esta literatura mais pop voltada para adolescentes e os filmes derivados daquelas histórias?

Não sei ao certo. Hoje em dia não leio mais muitos livros especificamente voltados para jovens, mas não tenho dúvida de que o fascínio pela adolescência é um fato real. Na literatura, nos filmes, mas também na música. É um momento da vida que tudo nos parece ser extremo, não? Tudo preto e branco. É algo que, quando a gente envelhece, sente falta, saudade. A vida vai se tornando mais repleta de áreas cinzentas. Faz sentido que nossa cultura seja obcecada por um momento de nossas existências em que não tínhamos muitas responsabilidades. Nem um entendimento completo do que a vida adulta nos traria.

Quais foram seus métodos para encontrar a voz de uma menina de 14 anos? Você usou suas próprias memórias de adolescente?

Voltei a meu empoeirado diário da época de adolescente. E isso ajudou pacas, me deu, especificamente, esta dimensão gigantesca que os sentimentos mais simples podem ter na vida de uma menina. Tudo é ou a pior coisa que jamais aconteceu com você ou a maior maravilha do século. Também ajudou muito o fato de que que a história é contada do ponto de vista de uma mulher já adulta, olhando para o passado. Um narrador adulto me deu mais liberdade - adolescentes são tão centradas em sua experiência imediata, sem o benefício de um olhar retrospectivo, um narrador jovem poderia se tornar algo como uma escrita claustrofóbica. Busquei a complexidade de um narrador que poderia olhar de fora e tratar com mais profundidade de determinado conceito. “As Garotas” é um livro sobre nostalgia também, sobre a distância entre nossas memórias e a realidade, e um narrados mais velho pode fazer comentários sobre esta separação das lembranças do que de fato aconteceu de uma maneira mais significativa do que uma adolescente, normalmente, seria capaz de fazer.

O livro se passa dentro de um culto que lembra o dos assassinatos cometidos por Charles Manson e seus seguidores, mas ao mesmo tempo, como alguns críticos destacaram, é como se “As Garotas” fosse sobre uma série de temas, menos a onda de terror de Manson na Califórnia em 1969.

Concordo com críticos que apontaram o crime narrado em “As Garotas” como a parte menos importante da narrativa. Estava muito mais interessada em momentos de violência cotidiana, psicológica e emocional, que exploro no livro. O centro do meu projeto era investigar a violência que existe na superfície de uma adolescente comum. Sim, me inspirei em como certos crimes, os de Manson, por exemplo, permanecem no inconsciente coletivo, se tornam símbolos culturais, mitos contemporâneos. Mas não estava interessada em reconstituir fatos que a imprensa narrou à época. Já há muitos livros e filmes lidando com a realidade histórica, autores tentando descobrir novas verdades dos mesmos fatos e em geral não vejo nada interessante, novo, nesses projetos. Queria fazer algo de fato diferente.

Ainda assim, como estava escrevendo sobre o passado - a virada dos anos 1960 e entrada nos 1970 - você teve de mergulhar em uma pesquisa sobre a época?

Fiz muita pesquisa, mas, curiosamente, com o objetivo de deixar a maior parte do resultado de lado. Você vê que não há, propositadamente, muitos detalhes óbvios de época. Queria escrever um livro que, embora se passa em um momento histórico específico, transcendesse as especificidades de tempo e espaço. Não foi fácil o equilíbrio: como criar uma atmosfera vívida mas sem cair nos clichês e nas pistas culturais, pop, de 1969. Meu foco teria de ser esta menina, a experiência adolescente, esta vida particular, esta personagem que eu carregava comigo. E foi justamente esta decisão, creio, que fez com que o livro ficasse universal.

O mal, a violência, o perigo. O que nos atrai tanto por estes temas? O fascínio pelo lado escuro também foi um motivador para você escrever “As Garotas”?

Era importantíssimo para mim não sensacionalizar ou glamourizar o mal que aparece no livro. Tive de pensar muito nas palavras que usaria. O ritmo tinha de ser mais cuidadoso. “As Garotas” é uma tentativa minha de lutar contra a maneira como a cultura contemporânea trata a violência, a transforma em expressão estética, em mito. Queria construir cenas de violência que refletissem a banalidade, a realidade cotidiana do mal. Queria tratar de pequenos e aparentemente pouco significativos detalhes que, no entanto, podem ser tão horrendos quanto algo de escala dramática mais obviamente gigante.

Quais são seus escritores favoritos? E você se lembra o que leu, ouviu, viu, quando escrevia “As Garotas”?   
                                          
Meus escritores favoritos são Joan Didion (“O Ano do Pensamento Mágico”), Scott Spencer (“O Homem do Bosque”), Mary Gaitskill e Norman Rush (os dois últimos foram vencedores do prestigioso National Book Awards, autores jamais publicados no Brasil). Os quatro estão interessados nos limites da experiência humana, em descobrir uma maneira de escrever sobre extremos. Sou fascinada por Joan Didion, ela escreve sobre a mitologia da Califórnia, seus perigos, seus prazeres, e usa pequenos detalhes para contar uma história muito maior. Já quando escrevia “As Garotas” não li nada, apenas ouvia música instrumental. As letras, assim, não me distraíam. Também tentei esquecer a pesquisa, de que falamos anteriormente, enquanto escrevia. Queria que os leitores sentissem que estavam lendo uma história original, não uma tese histórica ou coisa assim.

E a reação tanto do público quanto dos críticos foi impressionante para uma estreia no mundo da ficção. Você se surpreendeu com o tamanho do retorno?

Escrevi “As Garotas” sem pensar em muitas coisas, o foco era conseguir terminar o livro e só. Foi maravilhoso descobrir que o livro encontrou seus leitores, mas, para mim, a melhor parte foi escrever. É o meu universo, onde estou na minha zona de conforto. Sinto que a parte pública, digamos assim, da vida de “As Garotas”, tem muito pouco a ver comigo. Mas compreendi melhor com a recepção do livro que seus temas são de fato universais - todos queremos ser vistos, queremos ser acolhidos em grupos, famílias, comunidades. E apesar de “As Garotas” tratar de uma história muito específica, os desejos que são o coração do livro são familiares a muita gente. E, claro, todos nós fomos, um dia, adolescentes.

E, especificamente, mulheres que um dia foram meninas. Então, voltando ao começo da nossa conversa, amizade entre meninas é um dos temas centrais de “As Garotas”, um livro que é plural já em seu título, não?

O livro tomou sua forma final, certamente, pelo fato de eu ter crescido com quatro irmãs mais novas. Vê-las crescer, experimentar, cada qual à sua maneira, a adolescência, me informou muito sobre aquele momento e sobre que tipo de personagens minhas adolescentes seriam. Queria escrever um livro em que a história de amor central não fosse tradicional, e em vez de focar no líder masculino de um culto, olhei para a amizade das mulheres que circulavam naquele mesmo espaço. Sim, meu interesse foi entender a importância da amizade entre mulheres, que abordei como sendo um universo inexplorado. Veja bem, temos códigos culturais muito claros para outros tipos de relacionamento, como marido e mulher, pais, mães e filhos, parcerias de trabalho, mas de alguma forma a amizade feminina é livre das pressões sociais, toma as mais diversas formas. Esta indefinição permite a ambiguidade e dinâmicas outras de poder que me interessaram muitíssimo na hora de escrever “As Garotas”.