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Primeiro-bailarino do Theatro Municipal do Rio vira motorista de Uber

Filipe Moreira durante apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro - Arquivo pessoal
Filipe Moreira durante apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Carolina Farias

Colaboração para o UOL, do Rio

31/05/2017 04h00

A crise que assola o Estado do Rio de Janeiro e deixa cerca de 200 mil servidores com salários atrasados faz com que muitos se adaptem a novos trabalhos para sobreviver. Filipe Moreira é um deles. Primeiro-bailarino do Theatro Municipal do Rio, ele optou por trabalhar para a Uber para conseguir pagar as contas.

Servidores e aposentados do estado estão sem receber o salário de abril e o 13º de 2016. O vencimento de março chegou somente na segunda semana deste mês. Diante da situação, casado com a bailarina Élida Brum, também do Municipal, igualmente sem receber, e com um filho de seis anos, Filipe aderiu ao aplicativo e resolveu se arriscar pelas ruas no transporte de passageiros.

“Fomos pensando em alternativas e a Uber é uma maneira rápida de conseguir trabalho. Um emprego depende de várias questões e para montar negócio é preciso ter dinheiro. Sou bailarino, mas sei dirigir”, contou Moreira, que trabalhou com o aplicativo nos meses de março e abril. Ele deve voltar em junho se os pagamentos não forem normalizados.

“Tenho mais 20 dias (de dinheiro para se manter) que consegui com o Uber. Se não receber, vou pegar o carro da minha mãe de novo e correr os riscos da profissão novamente”, explicou o bailarino, que também vendeu seu carro quando os salários começaram a ser parcelados, no ano passado.

Quando fala em riscos, Moreira lembra de situações que, mesmo por pouco tempo como motorista, passou ao transportar passageiros.

“Várias vezes passei por escolta armada de meninos de 14 anos em favelas. Em uma corrida, chamada por um usuário no Jacaré (favela na zona norte do Rio considerada violenta). O cara sentou tirou uma arma e a colocou no colo. Eu disse ‘se quiser, pode levar o que quiser’. Ele respondeu que não, que queria ‘só uma carona’. Andamos umas dez quadras, ele com a arma e eu tremendo. Foi uma eternidade. Quando saiu agradeceu e pagou direitinho. Parei o carro, olho cheio de lágrima, tomei água e me dei conta do que passei”, contou o bailarino.

Filipe Moreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Filipe Moreira ingressou ao corpo de baile do Municipal em 2003
Imagem: Arquivo pessoal
Jornada dupla

Trabalhar em outra área só é possível para o corpo de balé do Municipal porque a direção não consegue mais exigir que os bailarinos compareçam todos os dias aos ensaios. Sem salários, muitos já não têm como pagar passagem ou comprar alimentos para cumprir a dura rotina do corpo de balé. Uma campanha arrecada gêneros alimentícios não-perecíveis e dinheiro para os funcionários do Municipal.

“Chegamos às 9h para alongar e aquecer. A aula começa às 10h, que é tida como outro aquecimento, com vários exercícios como barra, giros, saltos. Se tem espetáculo, ensaiamos todos os dias por dois meses de 12h às 16h30”, explica Moreira.

Atualmente, com a crise, os espetáculos foram suspensos, mas, os ensaios têm de continuar para o corpo de baile não perder a forma. Além de Moreira, outros bailarinos também procuraram alternativas de renda para superar a crise como vender bolos, comida e até vender roupas usadas pela internet, como a mulher do primeiro-bailarino.

“Além de não receber. Nosso salário está defasado pelo menos 60%. Estou aqui há 13 anos e ganho R$ 5.000. Sou primeiro-bailarino, é muito pouco para quem trabalha com o corpo, com despesas absurdas, com comida específica, complementos alimentares, sem contar o plano de saúde, aluguel”, lamenta-se Moreira.

Fora da curva

A trajetória de Moreira como bailarino é fora do comum. Nascido na cidade de São Paulo, ele começou a se interessar pela dança somente entre 17 e 18 anos, quando namorou uma garota que fazia balé – no geral, bailarinos começam com idades de sete a oito anos.

“De tanto acompanhar minha namorada, ganhei uma bolsa na academia, que era pequena. Depois de quatro meses teve uma audição em uma academia maior, onde entrei e conhecia muitas pessoas. Depois comecei a dançar em espetáculos na Cisne Negro Companhia de Dança e dois anos depois teve a audição aqui no Municipal”, relembra Moreira, que está com 36 anos.

Sem pretensão de ficar, o bailarino passou pelo concurso, que aconteceu em cinco dias de provas, ou melhor, de dança, e ingressou ao corpo de baile do Municipal em 2003. Atualmente, o teatro tem sete primeiras-bailarinas e cinco primeiros-bailarinos, de um total de 60 profissionais.

“Depois de um ano me tornei o segundo solista. Passou mais um ano e cheguei a primeiro solista e em mais um ano a primeiro-bailarino. Mas, dentro do teatro depende-se de cargos disponíveis. Fiquei oito anos fazendo os primeiros papeis sem ganhar o cargo, sem ganhar para isso”, conta Moreira.

Oficialmente, o bailarino foi nomeado à posição em 2016. Mas, Moreira diz sempre ter sido tratado como primeiro-bailarino, mesmo antes da nomeação. Ele representou o Municipal em diversas apresentações fora do país.

“Já dancei em Miami, Orlando, e também em cidades do México, Paraguai, Uruguai e Argentina, sempre representando o Municipal”, conta Moreira, único bailarino do corpo que dançou todo o repertório do Municipal como O Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, O Quebra-Nozes, Raymonda, Coppélia, Giselle, Floresta Amazônica, Onegin, Romeu e Julieta, Carmen e La Bayadère.

A situação dos funcionários do balé e também do Municipal revolta o primeiro-bailarino.

“É uma frustração absurda, você se sente sacaneado, enganado. Sem demagogia, me acho uma boa pessoa, um bom cidadão, bom profissional. Sou respeitoso, me dedico, sou um dos primeiros a chegar a um dos últimos a sair. Defendo a classe, faço parte da associação de bailarinos, são muitos anos de dedicação e quando menos espero sou apunhalado naquilo que é o de mais simples, o seu salário”, desabafa ao acompanhar a reportagem pelo interior do Municipal pouco antes de fazer a última observação sobre a situação.

“Eu nunca vi isso, os corredores, a entrada, tudo escuro. Mas, não tem mais condições de ter manutenção todos os dias. É triste”.

Outro lado

Por meio de nota, a Secretaria de Estado da Cultura diz que a situação da crise será contornada “a partir da ajuda federal que está sendo negociada junto ao governo federal”, sem dar previsão para a normalização dos salários atrasados.

O Municipal tem 532 funcionários e seu custo mensal gira em torno de R$ 2 milhões, segundo a nota.