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O mundo do narcotráfico é muito machista, diz autor de "A Rainha do Sul"

Eduardo Graça

Colaboração para o UOL

03/09/2016 06h30

“A Rainha do Sul” é um dos maiores sucessos de Arturo Pérez-Reverte, 65, um dos mais celebrados autores contemporâneos de língua espanhola, agora adaptado em série televisiva, com Alice Braga no papel-título, a primeira temporada em cartaz no Brasil pelo canal Space. Escritor, jornalista, cientista político, correspondente de guerra (cobriu conflitos na antiga Iugoslávia, Nicarágua e países africanos) e membro da Real Academia Espanhola, Pérez-Reverte pesquisou a fundo o narcotráfico no México para criar a personagem Teresa Mendoza, a fictícia primeira comandante de um cartel do sexo feminino. 

Autor também da série de aventuras “Capitão Alatriste”, com sete livros publicados e uma adaptação para o cinema, com Viggo Mortensen no papel-título, Pérez-Reverte conta que ainda não havia visto a transposição da história de Teresa Mendoza para a televisão. Mas elogiou, em entrevista exclusiva ao UOL, a maneira como a atriz brasileira encarou sua personagem. Diferentemente do livro, lançado na Espanha em 2002, a série leva Teresa, em fuga do México, para o Texas. Na história original a anti-heroína se estabelece na Espanha.

Reverte - Carlos Alvarez/Getty Images - Carlos Alvarez/Getty Images
O escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte
Imagem: Carlos Alvarez/Getty Images

Os melhores trechos da conversa, em que o escritor diz que “A Rainha do Sul” é uma obra feminista, fala da atualidade de seu livro mais recente, “Hombres Buenos”, a ser traduzido para o português nos próximos meses, sobre a importância da cultura como arma contra a corrupção, e sobre a evolução da violência no narcotráfico na América Latina nas últimas duas décadas, seguem abaixo:

Arturo Pérez-Reverte - Qual foi a inspiração para Teresa?
UOL - 
Minha inspiração direta foram os narcocorridos que ouvi quando estive no norte do México. Os corridos são baladas populares típicas do norte do México, e alguns deles tratam do universo do tráfico. Alguns deles celebravam uma legendária chefona das drogas. O resto foi minha imaginação e muita pesquisa.

Teresa é uma figura impressionante, uma mulher comandante de um exército e de um negócio milionário em um universo extremamente masculino. Jamais ouvi falar de uma traficante comandante do tráfico no Brasil, por exemplo...
O mundo do narcotráfico é extremamente machista. Não há possibilidades realistas de uma mulher chegar a postos importantes na hierarquia do tráfico. As mulheres do tráfico são, quase sempre, as trabalhadoras braçais, as amigas, as esposas, as mães, as amantes. Não tenho dúvidas de que uma das razões para o êxito comercial de “A Rainha do Sul”, o livro, e suas encarnações futuras, vem justamente do fato de que transformei algo presente apenas no cancioneiro popular em uma mulher de carne e osso.

A personagem é fictícia, mas o cenário é realista. Você usou suas habilidades de jornalista para criar a história?
Ter vivido do jornalismo me ajudou muito. O mundo do tráfico é, por natureza, hermético, secreto. Não é fácil conseguir entrar nele, em meio a guerras e confrontos armados. Fui encontrando minhas fontes, deixando claro que não iria fazer um livro-reportagem desbaratando o tráfico no México, especialmente no norte do país, onde encontrei os elementos que precisava para escrever o livro. Fui ganhando aos poucos a confiança dos entrevistados, deixando claro que minha regra de confidencialidade jamais seria quebrada. Nunca deixei de respeitar esta regra.

O narcotráfico retratado pelo senhor é muito diferente do dos dias de hoje, não?
Sim, naquele momento, o narcotráfico mexicano tinha regras, havia até mesmo um aspecto folclórico, quase divertido em relação à venda organizada de drogas ilegais, incluindo aí os corridos. Os traficantes que eu conheci estão ou mortos, ou na prisão. Os que vieram depois, começaram mais jovens e se mostraram bem mais violentos, com menos interesse pela população local e muito menos escrúpulos. O respeito que havia por mulheres e crianças acabou. Só ficou o desejo de ganhar dinheiro fácil, a qualquer custo, a adrenalina da ação, o medo instituído pela barbárie. A relação que estabeleci com alguns traficantes no norte do México seria completamente impossível hoje em dia. O mesmo aconteceu na Colômbia, na Venezuela, no próprio Brasil, é um fenômeno global. O corrido que fazia o ouvinte simpatizar com a vida daquelas pessoas também morreu. A trilha sonora do tráfico também mudou, é mais focada no sexo, na violência, na barbárie. Até a tentativa da cultura popular de justificar o tráfico pela pobreza extrema e crescente desigualdade social, se apagou, substituída pela lógica crua do business. Escrevi o livro no momento certo.

O aumento da violência também é um reflexo da falácia da política de guerra às drogas na América Latina desencadeada pelo governo Reagan nos anos 1980?
Sim. Não se investiu, por duas décadas, na possibilidade de negociação, de pactos com o tráfico. Também não houve interesse em levar o Estado às áreas controladas pelos traficantes, com raríssimas exceções. O que se viu foi uma guerra falsa, suja, especialmente no México, onde o governo usou os cartéis. Atacava um grupo para conseguir o apoio, por baixo dos panos, do cartel rival, que, por sua vez, financiava a candidatura de políticos alinhados com o partido governista. Prenderam-se lideranças que garantiam propaganda para os falsos repressores e deixaram em seus lugares jovens sicários decididos a aumentar a intensidade da violência. Cortou-se a cabeça do tráfico, mas permaneceu intacto o corpo, completamente desgovernado.

O senhor vê uma nostalgia romântica nas duas adaptações de "A Rainha do Sul" para a tevê e em séries como "Narcos"?
É uma pergunta difícil de responder. Hoje, cada vez mais, as séries televisivas ocupam, mundo afora, o papel que até pouco era da literatura mais popular, de massas. Os “Vitor Hugos” dos dias de hoje são os roteiristas de minisséries. No caso da “Rainha”, a telenovela mexicana, a primeira adaptação, foi um produto completamente diferente de meu livro. Não vi nem “Narcos” nem a “Rainha” da Fox, com Alice Braga vivendo Teresa, em que ela, ao contrário do livro, não sai do México para a Espanha, e sim para os Estad.

Mas mesmo com todas as mudanças na narrativa, Alice declarou que seu objetivo principal foi o de levar a essência da Teresa do livro para a telinha...
Sim, ela parece ter compreendido que eu não tentei escrever a história do narcotráfico mexicano, e sim o de uma mulher que tenta vencer em um território extremamente hostil, dominado pelos homens. Uma mulher simples, sem sofisticação cultural, mas que, obrigada pela vida, aprende a batalhar e a usar suas energias e sua fortaleza moral e intelectual para sobreviver no mundo do tráfico. Escrevi um livro feminista, que ousa ver o narcotráfico pela perspectiva de uma mulher. Está aí a mais importante contribuição narrativa que ofereço no livro.

Seu próximo livro a ser traduzido no Brasil, “Hombres Buenos”, lançado no ano passado, tem como pano de fundo a importância da cultura, inclusive como arma contra a corrupção, tema da hora no Brasil no momento em que setores conservadores criticam abertamente modelos de financiamento cultural público e até mesmo a educação crítica nas escolas...
O que é uma lástima, porque não há outra saída civilizatória que não a cultura. E cultura com C maiúsculo, que busca representar uma visão de mundo. Visão esta que é a arma que temos para enfrentar os déspotas, os corruptos, os néscios. Uma democracia cujo voto é dado por cidadãos culturalmente analfabetos de nada vale. A ilusão da liberdade sem a compreensão crítica do que se passa em nossa volta não passa, bem, de uma ilusão. Quando os governos, eleitos pela maioria da população, deixam a Cultura em segundo plano, a democracia entra em um patamar perigoso, frágil, ilusório.