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Atores negros protestam ao fim de espetáculo sobre apartheid na MITsp

4.mar.2016 - Em ação nomeada "Em Legítima Defesa", 20 atores negros protestam após peça sobre apartheid - Miguel Arcanjo Prado/UOL
4.mar.2016 - Em ação nomeada "Em Legítima Defesa", 20 atores negros protestam após peça sobre apartheid Imagem: Miguel Arcanjo Prado/UOL

Miguel Arcanjo Prado

Colaboração para o UOL, em São Paulo

05/03/2016 13h16

Um grupo de cerca de 20 artistas negros brasileiros surgiu na plateia da Sala Jardel Filho, no Centro Cultural São Paulo, na noite desta sexta-feira (4). Com um forte protesto, os artistas surpreenderam o público que havia terminado de assistir ao espetáculo-show "Revolting Music - Inventário das Canções de Protesto Que Libertaram a África do Sul", do músico sul-africano Neo Muyanga.

No concerto solo, Muyanga recriou músicas que encorajaram e embalaram sul-africanos nos duros tempos de Apartheid, o terrível regime de segregação de Estado entre negros e brancos que vigorou em seu país entre 1948 e 1994.

4.mar.2016 - O músico sul-africano Neo Muyanga durante o espetáculo "Revolting Music - Inventário das Canções de Protesto Que Libertaram a África do Sul", no MITsp - Caio Campos/Divulgação - Caio Campos/Divulgação
4.mar.2016 - O músico sul-africano Neo Muyanga durante o espetáculo
Imagem: Caio Campos/Divulgação

Com ajuda de sintetizadores, Muyanga criou um verdadeiro coro negro utilizando sua própria voz, o piano e a guitarra, em canções-lamento que emocionaram o público.

Contudo, a grande surpresa veio assim que o espetáculo terminou. No momento em que o público começava a subir os degraus da plateia, as caixas de som passaram a tocar em alto volume o verso "a cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras", da música "Capítulo 4 Versículo 3" dos Racionais MC's.

Logo, surgiram mais de 20 atores negros, vestidos de preto, na saída da plateia. Eles ficaram parados encarando o público com olhares fulminantes, enquanto a música soava. Os espectadores ficaram paralisados.

"Precisamos permanecer vivos"

Os artistas pediram que os espectadores se sentassem novamente. Eles tomaram o microfone e cada um falou sobre racismo, preconceito e opressão dos quais são vítimas diariamente, enquanto percorriam os corredores do teatro, cercando a plateia.

Uma das atrizes falou: "Isso aqui é realidade. Não é performance. É mais um grito". Nos discursos, os artistas acusaram a sociedade brasileira de fazer há séculos "um genocídio da população negra" e imploraram: "Nós precisamos permanecer vivos".

Um dos atores fez questão de contar quantos negros havia na plateia de 321 lugares: "16 ao todo. Essa é a cota?", questionou, enquanto outro encarou a maioria branca para dizer: "E você finge que não é com você".

Emocionada, uma atriz negra lembrou do preconceito que enfrenta na própria classe artística: "O que você pensa quando aceita pela terceira vez o papel de empregada ou de ladrão? Eu não sou da paz, porque a paz é muito branca, muito pálida".

Outro ator emendou: "Não vim aqui para fazer espetáculo ou provocar ninguém. Viemos para dizer a verdade. Não tentem nos invisibilizar". Um dos artistas causou comoção ao afirmar: "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro".

Eles ainda bradaram juntos "ubuntu", o conceito filosófico africano que significa "sou o que sou pelo que nós somos", pedindo maior importância com o outro.

Punho cerrado

Ao fim, os artistas voltaram todos ao fundo da plateia, na saída do teatro, e levantaram os braços esquerdos com o punho cerrado, gesto histórico de demonstração de força da negritude.

Em muitos dos atores participantes do protesto as lágrimas escorriam. Praticamente todos os 16 negros na plateia repetiram o gesto com os artistas. Pouquíssimos brancos o fizeram.

O ator Eugênio Lima, diretor da ação nomeada "Em Legítima Defesa", revelou ao UOL que "já imaginava que isso fosse acontecer". Para ele, o fato de muitos brancos não terem se solidarizado com o gesto negro "denota e expõe essa fratura" social existente no Brasil entre negros e brancos.

"Se a gente não criar esse campo o único argumento que se constrói é a partir da violência, uma violência que interdita o campo. A gente construiu a ideia de estar em legítima defesa, colocando a vida, o corpo e as ideias em ação. E isso veio do âmago desses atores e atrizes", afirmou.

Peça acusada de racismo

A maioria dos atores participantes do protesto havia sido selecionada para o elenco da peça "Exhibit B", do diretor sul-africano branco Brett Bailey, que foi desconvidada a participar da MITsp, depois de ser acusada de racista pelo movimento negro.

Na peça, que também provocou polêmica na Europa, o diretor expõe atores negros acorrentados para recriar zoológicos humanos existentes na Europa no século 19. Após repercussão negativa junto ao movimento negro, que rechaçou a peça no Brasil em um forte movimento na internet, a direção da MITsp preferiu tirá-la da programação. Os diretores da MITsp, Antônio Araújo e Guilherme Marques, afirmaram à reportagem, a saída da peça foi por uma questão de custos, negando qualquer tipo de censura ou influência dos patrocinadores do evento nesta decisão.

"Essa ação [chamada de performance poético-política] partiu da ideia dos próprios atores diante da impossibilidade deles de dialogarem com a sociedade. Nós chegamos para o Antonio Araújo e o Guilherme Marques [diretores da MITsp] e dissemos que não havia condições políticas de que essa peça [Exhibit B] viesse", lembrou Lima.

"Com isso, o discurso deles ficou invisibilizado. E eles me disseram: a gente precisa falar", revelou Lima, que deu forma ao protesto por via do depoimento.
 

MITsp deu apoio

Diretor executivo da MITsp, Guilherme Marques estava visivelmente impactado ao fim do protesto. Ao UOL, afirmou que o evento escolheu dar apoio à ação, que foi incorporada à programação do festival, que deu condições técnicas para que ele ocorresse.

"A curadoria escolheu não calar essas vozes dos atores que fariam o 'Exhibit B'. E foi incrível. Conseguimos esse diálogo entre o espetáculo do Neo Muyanga e esse protesto. É isso", afirmou.

As estudantes Camila Reginato Myrrha e Vitória Saragiotto, ambas brancas, também saíram emocionadas da Sala Jardel Filho. "Há muito tempo estudo sobre isso, mas ver as pessoas falando é completamente diferente. Ver essas pessoas dizendo 'eu não me calo' muda tudo. Estou muito emocionada", afirmou Myrrha. Sua colega, Saragiotto concluiu: "É um tema tão atual, mas infelizmente as pessoas fecham os olhos para isso e não querem mudar".