Cinderela sombria e crise econômica marcam abertura da 3ª MITsp
A tempestade que caiu sobre a capital paulista no começo da noite desta quinta (3) esvaziou o lançamento da terceira edição da MITsp, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Muitos convidados não compareceram e dezenas de lugares do Auditório Ibirapuera ficaram vazios na sessão de "Cinderela" (Cendrillon), do diretor francês Joël Pommerat, considerado um dos principais encenadores europeus, com o Teatro Nacional de Bruxelas e a Companhia Louis Brouillard. O evento abre para o público nesta sexta-feira (4) e vai até o dia 13 de março com dez peças em nove espaços paulistanos.
A montagem apresenta versão sombria e irônica para o conto infantil dos Irmãos Grimm, com uma Cinderela obcecada pela lembrança de sua mãe morta. Em meio a projeções, cada cena é desenhada com um quadro, num forte diálogo com as artes plásticas. A ironia também está presente na trilha sonora. Com atuações marcantes, sobretudo do elenco feminino, a Cinderela de Pommerat é uma mulher empoderada. Nesta montagem, é o frágil príncipe que deixa seu sapatinho nas mãos da moça, numa provocação que reconfigura o lugar comum dado aos gêneros nos contos infantis.
Com o racismo como tema, a MITsp colocou uma atriz negra como mestre de cerimônias, Roberta Estrela D'Alva. A crise econômica rondou os discursos que antecederam a peça. A própria apresentadora reclamou que seu grupo, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, perdeu sua sede por conta da especulação imobiliária, citando o nome da empreiteira.
Diretor executivo da MITsp, Guilherme Marques lembrou da dificuldade de concretizar esta edição do evento, sobretudo por conta da alta do dólar e do euro, prejudicando as negociações internacionais e gerando cortes. Das 15 peças estrangeiras pretendidas, sobraram apenas oito, somando-se a duas produções nacionais, quando o desejado eram cinco peças brasileiras. O orçamento divulgado da 3ª MITsp é de R$ 3,44 milhões.
"É sempre uma grande expectativa abrir uma mostra deste porte mediante a todos os percalços que tivemos. Estamos felizes em ter conseguido levar adiante este projeto", falou Guilherme Marques ao UOL, pouco antes de subir ao palco. "Tivemos que reduzir, mas a programação está coesa e manteve seus eixos reflexivos e formativos. Acho que está potente", declarou. Em seu discurso, ele ainda afirmou que vai acontecer a edição de 2017 --contrariando os rumores de que o evento pode se tornar bienal--, mas não deu a data em que a quarta edição ocorrerá, como fez no ano passado.
Soluções para a crise
O secretário de Cultura do Estado de São Paulo, Marcelo Mattos Araújo, falou sobre o corte de verbas: "É um desafio que todas as áreas no Brasil enfrentam com a crise econômica que atinge todos os setores. Ninguém está imune. O importante é encontrar soluções e maneiras de superar, como MITsp fez".
Secretário de Cultura da cidade de São Paulo, Nabil Bonduki afirmou que "não há outro festival teatral na cidade de São Paulo com a abrangência da MITsp", que, em sua visão, ajuda a "firmar São Paulo como principal polo cultural do hemisfério sul". Lembrou que a Prefeitura de São Paulo cede pela primeira vez para o evento o Theatro Municipal. "É um lugar emblemático e no qual vai acontecer o espetáculo '100% São Paulo', com a participação de cem moradores da cidade", adiantou.
Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural, principal patrocinador privado da MITsp, disse que a verba dada pela entidade "cresceu". Apesar disso, falou que precisou ajudar a MITsp "a resolver alguns problemas de cortes de outros patrocinadores e na questão da elevação cambial".
Ver ao vivo
Se as celebridades não deram as caras, nomes do teatro compareceram mesmo debaixo de chuva. Eric Lenate, que recentemente dirigiu Débora Fallabela na peça "Mantenha Fora do Alcance do Bebê", contou que programou ver também "Still Life (Natureza-Morta)", do grego Dimitris Papaioannou. Definiu a MITsp como "a oportunidade de ver ao vivo nomes que conhecia e admirava".
Para o ator Luiz Damasceno, que trabalhou com o norte-americano Bob Wilson em "A Dama do Mar" e está escalado para a nova produção brasileira do diretor, a MITsp é "oportunidade de ver tendências europeias" e de trocar informações, além de formar olhares. "Quando comecei a trabalhar com o Gerald Thomas, parecia que era uma loucura o que ele fazia. Hoje, é comum", ponderou.
A MITsp atraiu também representantes de outros festivais, como o cubano Luís Alonso, diretor do FilteBahia, o Festival Latino-americano de Teatro da Bahia. "Vim de Salvador por conta da MITsp. Estamos fazendo um encontro dos diretores de festivais internacionais no Brasil para no dia 13 fazer a entrega de um documento ao Ministério da Cultura com nossas reivindicações em função do panorama econômico complicado", adiantou.
Polêmica e debate
Rudifran Pompeu, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, falou que o evento "é vital para o intercâmbio e proporciona debates". E lembrou a polêmica com o espetáculo "Exhibith B", do diretor branco sul-africano Brett Bailey, que foi acusado de racismo ao colocar atores negros acorrentados em sua peça, reproduzindo zoológicos humanos que existiram na Europa no século 19.
Após protestos em Londres e Paris e pressão do movimento negro no Brasil, que prometeu fazer barulho caso a peça viesse, os diretores da MITsp acharam melhor desconvidá-la, com medo de perder patrocinadores com o escândalo.
"É importante isso ter vindo à tona para ser debatido", afirmou Pompeu, que organiza a Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Ele lamentou também a ausência de espetáculos da América Latina na programação, com peças da Europa e África, além do Brasil. "Não sei como a curadoria trabalhou, mas gostaria que tivesse alguma expressão da América Latina. É uma falta importante, afinal a cena latino-americana é rica e tem de ter. Isso tem de ser pensado", propôs. Sobre a falta de dinheiro na cultura, pediu união dos artistas: "Todas as esferas políticas precisam ser cobradas".
Sem coquetel, mas com balada
Após a apresentação de "Cinderela" não houve o habitual coquetel, como nas duas primeiras edições, frustrando muitos convidados num claro recado da direção da MITsp que os tempos são de vacas magras.
Os mais animados rumaram para o Centro Compartilhado de Criação, galpão de Caco Ciocler e Ricardo Grasson na Barra Funda onde aconteceu a primeira noite do Cabaré MITsp, festa diária que pretende reunir artistas e público após as peças até o fim do festival, em 13 de março.
"Sempre a partir das 22h vai ter duas horas de intervenção artística, música, dança, artes plásticas, circo. Depois, baladinha, com DJ e música até quatro, cinco horas da manhã. Afinal, o povo de teatro gosta de festa", diz Grasson.
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