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Editora leva temas sociais e de gênero a crianças e gera debate

Capa e primeiras páginas do livro "A Ditadura É Assim" - Reprodução
Capa e primeiras páginas do livro "A Ditadura É Assim" Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colaboração para o UOL, em São Paulo

19/02/2016 16h45

No começo deste ano, a editora Boitempo lançou seu novo selo, o Boitatá, pelo qual publicará livros infantis que levarão às crianças assuntos que costumam provocar discussões dentre os adultos. Os dois títulos de estreia são “A Democracia Pode Ser Assim” e “A Ditadura É Assim”, escritos por uma equipe de profissionais e que integram a coleção “Livros Para o Amanhã”, lançada originalmente em 1977 pela extinta editora catalã La Gaya Ciencia e reeditada recentemente pela também espanhola Media Vaca.

Na versão brasileira de “A Ditadura É Assim” foram acrescentadas ilustrações de dois ditadores locais: Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. Na festa de lançamento do selo, quem comprava ambos os títulos, pensados para crianças entre 8 e 10 anos, levava para casa o “Jogo da Memória dos Ditadores”, com caricaturas de nomes como Adolf Hitler, além dos brasileiros já citados. Os próximos lançamentos do selo, previstos para março, são “As Mulheres e os Homens” e “O que são Classes Sociais?”. Com isso, a pergunta que fica é: esses são temas que realmente devem ser levados aos pequenos? Isso não pode acabar, de alguma forma, servindo de objeto de doutrinação?

Capas dos livros do selo Boitatá - Divulgação - Divulgação
Capas dos livros do selo Boitatá
Imagem: Divulgação

O cientista político João Pereira Coutinho é totalmente favorável a qualquer tipo de publicação, mas levanta algumas questões. “Se escritores de literatura infantil pretendem abordar esses temas nas suas obras, boa noite e boa sorte. Faço, porém, duas ressalvas. A primeira é que esses livros não devem ser 'obrigatórios' em nenhum currículo; a função da escola não é doutrinar, mas ensinar. E ensinar também significa não entrar por territórios que pertencem às famílias e não ao Estado”, diz. “Em segundo lugar, suspeito que livros infantis preocupados com 'questões de gênero' serão o supremo tédio para qualquer criança. As crianças, normalmente, são mais inteligentes do que os autores dessas obras", completa.

Já Maria Valéria Rezende, vencedora do último Jabuti e autora de livros infantis como “O Problema do Pato” e “Jardim de Menino Poeta”, diz ser válido levar às crianças qualquer discussão que, de alguma forma, faça parte do universo perceptível delas. “A questão de gênero já está dada de antemão, ainda mais agora que se sabe o sexo do bebê antes dele nascer, com essa besteira generalizada e mercantilizada de cor e coisa 'de menino' ou 'de menina'. E a questão das imensas diferenças de tratamento que a sociedade dá às pessoas, desde o berço, conforme sua situação de classe, também se apresenta imediatamente à criança. Não creio que alguém consiga esconder nem da criança privilegiada, mesmo em carro blindado e com vidros espelhados, a criança pobre que tenta vender bombons nos cruzamentos das ruas”.

Ela acredita que não levar discussões a respeito desses fatores da realidade às crianças faz com que elas crescem predispostas ao “egoísmo, à rejeição do outro, à intolerância ou ao sofrimento reprimido, ou à revolta violenta em lugar do esforço para superar essas barbaridades”.

Thaisa Burani, editora do selo Boitatá, concorda. “A criança ainda está formando seus valores e sua bagagem cultural, tentando entender seu lugar no mundo. Então, se nesse momento ela começa a ter contato tanto com temas ligados a diversidade e respeito às diferenças, quanto com questões políticas, as chances de se tornar um cidadão mais tolerante e envolvido com sua própria sociedade e com o coletivo aumentam sensivelmente”.

Os limites

A própria Thaisa, no entanto, acredita que há sim limites na literatura infantil, que deve obrigatoriamente obedecer aos padrões éticos da sociedade, sem confundir liberdade de expressão com discurso de ódio ou a própria questão da doutrinação.

Como exemplo, lembra de livros infantis que apresentam a morte às crianças, mas diz que repudiaria alguém que usasse e tirasse proveito do tema de forma sensacionalista. “Claro que isso deveria valer para qualquer produto cultural. Mas, no caso do público infantil, acredito que o cuidado deva ser redobrado, porque estamos lidando com indivíduos em formação que ainda não possuem recursos nem repertório suficiente para se defender de experiências ou discursos nocivos”, explica.

Shakespeare para criança

Por sua vez, a escritora Nara Vidal, autora de títulos como “O Doce Plano das Galinhas”, entende que o limite da literatura infantil deva estar somente na linguagem, que precisa ser acessível aos pequenos. Ela cita um exemplo pessoal, de uma discussão sobre machismo com a filha de sete anos, levantada durante a leitura de uma versão adaptada de “Noite de Reis”, de William Shakespeare.

“Começamos a pensar no papel da Viola, a personagem que, sobrevivente de um naufrágio, precisa se passar por menino para não ser reconhecida e passa a executar tarefas designadas originalmente só aos meninos. Mesmo que superficial ainda, é uma discussão importante”, diz.

Para Nara, os pequenos leitores não devem ser subestimados. “Temos a mania de julgar as crianças por nós mesmos, o que é uma enorme falha, já que somos feitos de experiência e hábitos que nas crianças ainda estão em processo e em conquista”, lembra. Ela acredita que, em vez de os adultos decidirem as idades corretas para que determinados assuntos sejam apresentados, deve-se respeitar a individualidade. “É preciso estar atento para não colocar toda criança num balaio só e presumir que estão todas prontas para o assunto em questão, sem considerar seriamente a maturidade social, intelectual e emocional de cada uma. Usualmente, a criança vai nos apontar quando está pronta para discussões específicas, através de perguntas e reflexões”.

E a doutrinação?

Voltando à questão da doutrinação, que é uma preocupação para intelectuais como João Pereira Coutinho, Nara entende que sim, alguns livros, se usados por professores ou pais sem senso crítico, podem servir de plataforma para manipulação ideológica. “O ideal é fornecer ao leitor em formação uma variedade de obras com pontos de vista diversos sobre o mesmo assunto, para que, com o tempo, cada um seja responsável pela sua opinião, embasada por conhecimento e pontuada por reflexões, considerações”, acredita.

Maria Valéria, por sua vez, vê em obras como as que a Boitatá está lançando um elemento para se evitar isso. “A discussão justamente é que pode evitar a doutrinação. Há que superar a secular tradição de contar histórias 'infantis' que terminavam sempre com uma 'moral da história', essas sim, quase inevitavelmente doutrinadoras. Não levantar discussão nenhuma, esconder, calar ou dar respostas pré-fabricadas (e necessariamente ideológicas ou preconceituosas) sobre o que salta aos olhos e intriga a criança que está tentando conhecer, compreender o mundo e a si mesma dentro desse mundo, é que é o caminho garantido para a doutrinação”.

Thaisa mostra-se preocupada com a questão e garante que uma das premissas fundamentais do selo é não trabalhar com livros que imponham uma única forma de ver o mundo. “Queremos livros que façam pensar. Que agucem a curiosidade das crianças, que façam elas se interessarem por novos temas e tenham vontade de saber mais, de questionar e de ir atrás das próprias respostas. Queremos livros que ajudem pais e educadores a introduzir e debater temas complexos no processo de aprendizado da criança. Isso não tem nada a ver com doutrinação”.