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Por que sou contra a publicação de Minha Luta, de Adolf Hitler, no Brasil

Capa da primeira edição de "Mein Kampf", assinada por Adolf Hitler - Reprodução/EPA/HO
Capa da primeira edição de "Mein Kampf", assinada por Adolf Hitler Imagem: Reprodução/EPA/HO

Ricardo Lísias*

Colaboração para o UOL

22/01/2016 07h00

Em janeiro de 2016 o livro "Minha Luta", de Adolf Hitler, entrou em domínio público internacional. Proibido até aqui pelo detentor dos direitos (o estado alemão da Baviera), agora não é preciso autorização para publicá-lo. No Brasil, estão anunciadas duas edições comerciais.

O UOL convidou escritores para debater a pertinência ou não de se reeditar a obra, considerada "a bíblia do nazismo": Miguel Sanches Neto, que você pode ler neste outro artigo, defende a publicação. Ricardo Lísias, cujos argumentos você lê abaixo, é contra a publicação:

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Vou expor abaixo meu incômodo, que está sobretudo na natureza dos argumentos utilizados para justificar a obtenção de lucro com o texto de Hitler. Na Alemanha, a edição não terá fins lucrativos. Por razões de foco e espaço, não comentarei as publicações no exterior, mas uma análise valeria a pena. Em Portugal, por exemplo, a única editora que colocou o livro no mercado não tem mais nada no catálogo. Foi criada só para isso.

a) Afirma-se que para compreender Hitler e tudo o que ele causou é preciso ler o livro.

Livro algum revela seu autor. Entre um texto e quem o assina há uma série de mediações, que vão da ideologia do leitor, a diferença entre os momentos históricos da redação e da leitura, até aspectos de linguagem, entre outros tantos detalhes. Um pequeno manual de teoria da recepção mostra como esse argumento é falacioso. Um texto revela sobretudo quem o lê, inclusive no caso de especialistas: suas opções, correntes ideológicas e repertório intelectual. Uma discussão consequente sobre Hitler e o nazismo exige a leitura de muitos livros.

b) Existem livros tão perigosos quanto "Minha Luta". A Bíblia e outros textos sagrados seriam um exemplo.

É difícil de acreditar, esse argumento aparece muito nas discussões sobre a validade de uma edição comercial de "Minha Luta". A continuação costuma ser a seguinte: "Dependendo da interpretação, textos sagrados podem servir para justificar genocídios". Estou envergonhado de ter que dizer o seguinte: dependendo da interpretação, qualquer texto pode servir para justificar qualquer coisa...

A questão não é a interpretação que alguém possa dar a um texto. O fato é que o autor de "Minha Luta" é um desgraçado. Ele é mais que um desgraçado. Ele é alguma coisa que as palavras não podem transmitir. Hitler é o responsável direto pelo assassinato de dezenas de milhões de pessoas. Não é o caso dos autores da Bíblia ou de outros textos sagrados que, com algumas exceções, ninguém sabe muito bem quem são.

As grandes religiões têm em sua história páginas lamentáveis. Por outro lado, também são responsáveis por muitos dos grandes momentos da história humana. Como um mínimo exemplo, cito a "Missa em Si Menor" de J. S. Bach. Quanto ao nazismo, não existe absolutamente nada de bom ligado a essa palavra.

Em resumo: o problema de uma edição comercial de "Minha Luta" não são as intermináveis interpretações que sua leitura suscita, mas sim o autor do livro e sua "obra".

c) A leitura de "Minha Luta" serve como advertência para o que aconteceu e colabora para que o nazismo não se repita.

Outro argumento incrivelmente falacioso. Em 2016, todo mundo sabe o que significa o nazismo, o que ele causou e quais as consequências das ideias de Adolf Hitler para a história. Também li argumentos da seguinte natureza: "É preciso ler esse livro para não ser racista". Não existem argumentos racionais que justifiquem o racismo. A leitura é uma atividade racional. Portanto, ninguém deixará de ser racista lendo nada. O mesmo argumento vale para o nazismo e para todos os tipos de extremismo e intolerância.

Nada se aproveita da leitura: trata-se de um apanhado desconexo e irrelevante de bobagens sem qualquer raciocínio válido, nenhuma informação procedente, bravatas racistas e todo tipo de delírio redigido em um estilo tosco e simplório. Portanto, não é possível afirmar que se deve 'combater o livro em sua fonte'

d) "Minha Luta" é um documento histórico.

Sem dúvida, o livro de Adolf Hitler não passa disso. Qualquer documento histórico interessa em primeiro lugar a leitores especializados. Os especialistas devem ter acesso a "Minha Luta", como aliás qualquer outra pessoa que queira. Estudiosos da Shoá evidentemente conhecem o alemão. Pesquisadores de literatura, história e "curiosos" em geral podem ter acesso a cursos com esses especialistas.

A propósito, foi em um deles que li "Minha Luta". Nada se aproveita da leitura: trata-se de um apanhado desconexo e irrelevante de bobagens sem qualquer raciocínio válido, nenhuma informação procedente, bravatas racistas e todo tipo de delírio redigido em um estilo tosco e simplório. Portanto, não é possível afirmar que se deve "combater o livro em sua fonte". Como não há o menor raciocínio organizado no texto de Hitler, não existe ponto de diálogo com "Minha Luta". 

Acho uma excelente ideia discutir racismo nas escolas. Professores devem ser preparados para isso em cursos superiores ou de extensão universitária. Uma edição restrita e não comercial é a única saída ética para que não haja lucro com as ideias de Adolf Hitler. Um "curioso" que por algum motivo queira apenas ler "Minha Luta" não tem de fato um interesse sério em compreender o nazismo, já que a leitura de um único livro, repito, não vai esclarecer nada. De qualquer forma, bibliotecas podem abrigar o livro. Quem visita acervos públicos, inclusive, tem seus dados registrados...

Editores e livreiros que estão atrás do lucro que o nome de Adolf Hitler pode gerar devem ter consciência de que o nazismo tomou força sobretudo graças a uma imensa crise financeira. Vamos mais uma vez ao óbvio: vivemos outra imensa crise financeira e extremismos estão de novo se intensificando.

Lucrar com o livro de Hitler é aceitar que dá para ganhar dinheiro com tudo. No meio dos livros, "Minha Luta" é o fundo do poço, não vejo como ganhar dinheiro com nada pior

e) A liberdade de expressão garante a circulação de "Minha Luta".

Não acho que o livro deva ser proibido. Com exceção de especialistas, ninguém vai tirar nada de razoável com a leitura de "Minha Luta". Interessados em nazismo não precisam dar lucro para quem coloca o nome de Hitler como autor em seu catálogo ou nas suas prateleiras. Há centenas de livros relevantes: procurem T. Adorno, H. Arendt, Victor Klemperer. A ficção também é extensa, eu começaria por "As Benevolentes", de Jonathan Littell. Enfim, a lista é longa.

Algumas pessoas dizem que o nazismo proibia livros, portanto proibir "Minha Luta" seria um ato nazista. Repito que não proponho a proibição do livro, apenas ressalto como é desagradável saber que tem gente querendo lucrar com o idealizador e executor de uma das maiores tragédias da história humana. O nazismo propunha a "produção total" (aliás, propunha que "tudo fosse feito totalmente", inclusive a aniquilação total de diversos grupos humanos), algo muito próximo ao capitalismo contemporâneo. Lucrar com o livro de Hitler é aceitar que dá para ganhar dinheiro com tudo. No meio dos livros, "Minha Luta" é o fundo do poço, não vejo como ganhar dinheiro com nada pior.

Quem brada "censura!" quando ouve que "Minha Luta" não deve ser vendido já se entregou ao consumo: acha que só existe o que está no comércio... 

Publicar comercialmente ou vender "Minha Luta" não é um ato de militância em defesa de nenhuma causa, como se pode ver. Não estou por óbvio defendendo que editoras comerciais devam fazer uma edição não-comercial do livro. Elas simplesmente poderiam deixá-lo muito longe de seu catálogo.

Assim, quem vai correr às livrarias para comprar "Minha Luta"? A resposta é fácil: nazistas, racistas, fascistas e extremistas. O resto já sabe muito bem o que Hitler fez, o que ele significa e que ler "Minha Luta" fora de um ambiente especializado é mera perda de tempo inclusive para entender o nazismo. Naturalmente, notas de rodapé, prefácios, posfácios e apêndices não dispensam o acompanhamento especializado: aparatos críticos também exigem contextualização.

Para terminar com uma nota menos desagradável, se há alguém realmente desesperado para ler "Minha Luta", procure a série com esse nome de Karl Ove Knausgard [escritor norueguês, publicado no Brasil pela Companhia das Letras]. Nesse caso não vai ser perda de tempo. Quanto a mim, resolvi levantar o problema de uma edição comercial desse livro porque o mundo contemporâneo me assusta. Quero deixar bem claro o lado em que estou.

 

* Ricardo Lísias é escritor, autor de "Divórcio e Concentração" e outros contos, entre outros livros. Doutor em literatura brasileira pela USP, atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Unifesp. Atuou como professor e escritor convidado na Universidade de Viena e na University College London, na Inglaterra. Em maio próximo, terá sua primeira peça de teatro montada.