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Livro escrito por Hitler volta às livrarias brasileiras em meio a polêmicas

Capa da primeira edição de "Mein Kampf", assinada por Adolf Hitler - Reprodução/EPA/HO
Capa da primeira edição de "Mein Kampf", assinada por Adolf Hitler Imagem: Reprodução/EPA/HO

Rodrigo Casarin

Colaboração para o UOL, em São Paulo

12/01/2016 19h18

Em 1924, enquanto esteve preso, Adolf Hitler começou a escrever uma mistura de autobiografia com panfleto político no qual defendia as ideias extremas e absurdas, calcadas no racismo e no nacionalismo, que mais tarde seriam colocadas em prática enquanto esteve comandando a Alemanha. O livro "Mein Kampf" ("Minha Luta", em tradução livre), com cerca de 700 páginas, foi lançado em 1925, vendeu mais de 12 milhões de exemplares e se tornou uma das principais plataformas para a difusão das ideias nazistas.

Após o suicídio do ditador, em 1945, em Berlim, os direitos da publicação ficaram com o governo da Baviera, que vetou qualquer nova edição do calhamaço. No entanto, desde o dia 1º de janeiro de 2016, ano seguinte a se completar sete décadas da morte de Hitler, "Mein Kampf" se tornou um título de domínio público. Ou seja, pode ser republicado por qualquer pessoa no mundo, e ao menos três editoras brasileiras (Edipro, Geração Editorial e Centauro, que há alguns anos já tinha publicado uma versão da obra) irão colocar a "Bíblia" do nazismo nas livrarias brasileiras --ou em parte delas-- nos próximos meses.

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Tanto a Centauro quanto a Edipro devem apostar em simples traduções da obra. Já a Geração Editorial prepara um material bastante amplo para auxiliar a leitura daqueles que irão ter contato com as palavras escritas por Hitler. Além de uma tradução direta dos originais alemães que está sendo preparada por William Lagos, o volume contará com três textos auxiliares (assinados por Luiz Fernando Emediato, editor da casa; Nelson Jahar Garcia, doutor em História; e Eliane Hatherly Paz, doutora em Letras), 305 notas e apêndices extraídos de uma edição do título publicada nos Estados Unidos em 1939.

"[Esses] São os cuidados que se devem tomar com livros históricos, polêmicos e controvertidos. Ser editado com prefácios, comentários, notas e contextualizações. Como se trata de um panfleto de propaganda, que mente, sonega e distorce verdades históricas, essas notas são imprescindíveis", explica Emediato, o editor. O resultado deverá ser um tijolo com cerca de mil páginas, parte delas ilustradas, que chegará às livrarias entre fevereiro e março.

Lucro com ideias de Hitler

A decisão das editoras em publicar a obra vem causando controvérsias. No Facebook da Geração Editorial, por exemplo, há mensagens de internautas dizendo que não comprarão mais livros da casa como forma de protesto. Um escritor que se posicionou publicamente contrário a essas publicações de "Mein Kampf" por conta do aspecto comercial foi Ricardo Lísias, autor de "Divórcio" e "O Céu dos Suicidas", dentre outros.

"Até onde entendi, alguém terá lucro no Brasil com as ideias de Hitler. Depois, uma edição comercial coloca uma série de detalhes: haverá divulgação do livro? Vai haver um cartaz dizendo 'compre esse livro para não ser nazista' ou 'compre esse livro para decidir se concorda com os especialistas', ou ainda 'compre esse livro para decidir se você vai ou não ser nazista'? É incrível a falta de sensibilidade histórica contida na proposta de uma edição comercial do livro do Hitler", disse ele em entrevista ao Suplemento Literário Pernambuco.

Na ocasião, Lísias também colocou em xeque o argumento de que a obra se trata de um importante documento histórico que deve estar ao acesso de leitores. "Partindo do princípio de que em 2016 ninguém precisa de especialistas para saber o que significam as ideias de Hitler, não é possível dizer que é preciso ler esse livro para entender como funciona o inimigo. Há muitos livros excelentes explicando como funcionou o regime nazista. A questão aqui, de novo, é tratar como normal um livro cujo autor é o causador de uma das maiores tragédias da história humana", diz ele, que, por outro lado, faz questão de ressaltar que, ao seu ver, "em momento algum o livro deve ser proibido".

No papel de editor, Emediato se mostra ciente de todas as polêmicas que cercam a decisão de publicar a obra. "Recebemos conselhos, advertências e ameaças. Os conselhos foram respeitosos e respondemos com nossos argumentos. As advertências e ameaças foram ridículas e ignoramos. Não nos envolvemos nas disputas entre sionistas, antissemitas e as várias correntes judaicas. Nada disso nos interessa. Nos interessa unicamente a liberdade de expressão e o livre arbítrio. Toda forma de censura e repressão me causa repugnância. Quanto ao 'lucrar', trata-se de argumento estúpido. Todo lançamento implica em riscos. Nossa editora não é uma instituição de caridade. Todas as editoras têm um caráter cultural, mas são um negócio como qualquer outro. Não vivemos de subsídio".

Posição das livrarias

O editor também apontou que há redes de varejo que já indicaram que não irão trabalhar com o livro escrito pelo ex-ditador alemão. "Algumas grandes livrarias já anteciparam que não vão vender o livro. Lamento muito, porque qualquer um poderá baixar edições propagandísticas, sem qualidade, pela internet. Não existe a menor possibilidade de se vedar o acesso ao texto de Hitler. O nosso, com notas críticas, deveria receber apoio, não contestação".

Procurados, responsáveis pela Livraria Curitiba disseram que ainda não têm uma posição definida sobre o assunto; a Martins Fontes garantiu que trabalhará normalmente com a obra e a Livraria Cultura não respondeu até o final da reportagem. Fontes indicam que a Saraiva já decidiu que não irá comercializar nenhuma edição de "Mein Kampf", mas, quando procurada, a empresa se limitou a mandar um comunicado genérico no qual explica que "não comenta suas negociações, estratégias comerciais ou acordos com fornecedores, de forma mais genérica ou segmentada por título específico".

Quem se posicionou ao lado de Emediato foi Carlos Andreazza, editor da Record. Apesar da editora ter definido que não irá publicar nenhuma edição do título, Andreazza disse em texto publicado no blog da casa que não marginaliza quem o fará. "Não se trata de difundir ou não um livro; porque, afinal, seu texto sempre esteve disponível e é facilmente encontrado na rede. O editor é um mediador, um intermediário de excelência, e uma de suas funções consiste em --diante de um cenário como este, em que o acesso fácil ao livro é um dado inescapável da realidade-- qualificar essa difusão, dar-lhe dimensão histórica, massa crítica, o peso cultural do tempo", escreveu, acrescentando que é essencial ao leitor um aparato crítico amplo, que mostre como as ideias de Hitler foram aplicadas, "para que tal barbárie jamais se repita".

Enquanto isso, na Alemanha

O fato de "Mein Kampf" ter se tornado uma obra de domínio público vem causando polêmica também na Alemanha, onde a ministra da educação, Johanna Wanka, já se posicionou defendendo que o título seja trabalhado em escolas, o que desagradou parte significativa da sociedade alemã.

Por lá, uma edição do Instituto de Munique, órgão ligado ao governo local, já está sendo vendida em livrarias. Trata-se de dois volumes que somam cerca de 2.000 páginas e trazem, além do texto de Hitler, diversos comentários e apêndices críticos assinados por historiadores. Toda essa contextualização histórica é uma exigência local: o país considera que reeditar apenas o conteúdo original do livro se enquadra no crime de propaganda nazista.