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Freira que ganhou Jabuti de melhor romance centra obra nos marginalizados

A escritora paulista Maria Valéria Rezende - Roberto Menezes/Divulgação
A escritora paulista Maria Valéria Rezende Imagem: Roberto Menezes/Divulgação

Rodrigo Casarin

Colaboração para o UOL, em São Paulo

26/11/2015 17h55

Quando a CBL (Câmera Brasileira do Livro) anunciou os vencedores da 57ª edição do Prêmio Jabuti, o mais tradicional do mercado editorial brasileiro, muita gente se surpreendeu com alguns do nomes que levaram as categorias mais importantes da premiação. Da jovem Carol Rodrigues (de "Sem Vista Para o Mar", na categoria Contos e Crônicas) a Daniel Aarão Reis (de "Luís Carlos Prestes - Um Revolucionário de Dois Mundos", na categoria Biografia). Mas foi na categoria Romance que surgiu um forte nome: Maria Valéria Rezende, autora de "Quarenta Dias", que deixou para trás obras de João Anzanello Carrasco, Evandro Affonso Ferreira, Cristovão Tezza e Chico Buarque.

Maria Valéria, 73, tem uma trajetória ímpar na literatura nacional. Nascida em Santos, no litoral de São Paulo, ela se tornou freira, aos 24 anos, da Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho. Dedicou sua vida à educação e alfabetização de pobres, tanto em São Paulo, seu estado natal, quanto no Nordeste, onde fixou moradia em João Pessoa a partir de 1986. Por lá, esteve principalmente em meio às lutas de trabalhadores rurais por terra no brejo paraibano e hoje trabalha ajudando imigrantes da África e do Haiti.

Durante a ditadura, no entanto, já tinha levado sua atenção a pessoas de outros países. Por auxiliar militantes da esquerda, passou a ser perseguida pelos militares, o que a forçou a deixar o Brasil. Foi viver em lugares como Angola, Cuba, Timor e França, onde se formou em literatura francesa pela Universidade de Nancy e fez mestrado em sociologia --antes disso, já era pedagoga formada pela PUC.

Sua estreia como escritora de ficção aconteceu em 2001, com "Vasto Mundo", livro de contos que retrata o povo nordestino. Seu primeiro romance foi "O Voo da Guará Vermelha", de 2005, no qual ficcionalizou muito do que viveu enquanto ensinava jovens e adultos a ler e escrever.

"Valéria tem uma experiência de vida enorme, e os seus livros refletem isso, apresentam personagens marginalizados, geográfica e economicamente. É legal para os leitores que, ultimamente, são bombardeados com livros auto-centrados em personagens padrões (branco, classe média) ter possibilidades de visitar outros lugares e outras mentes", diz o escritor Roberto Menezes, autor de "Julho é um Bom Mês Pra Morrer", que conhece há dez anos Maria Valéria, sua colega no Clube de Conto da Paraíba.

"Quarenta Dias"

Menezes define o agora premiado "Quarenta Dias" como "um livro forte", com uma protagonista "que vibra a cada página" e que oferece ao leitor a "sensação de estar em um lugar estranho e conhecer um pouco sobre ele". A protagonista, no caso, chama-se Alice e o lugar estranho é Porto Alegre. Na história, a mulher, uma professora aposentada que também é narradora da obra, deixa João Pessoa, ruma para a capital do Rio Grande do Sul e imerge na periferia da cidade que desconhece para, a pedido da filha, procurar por um rapaz que sequer tem certeza de que existe, missão que acaba por transtornar sua cabeça.

Para escrever a obra, a própria Maria Valéria perambulou pelas ruas da capital gaúcha perguntando por alguém que ela mesmo inventou. "Fui a Porto Alegre, minhas irmãs de lá me abrigaram, percorri duas semanas o avesso da cidade, usando como senha uma pergunta que depois emprestei a Alice, minha personagem/narradora: 'Conhece um rapaz da Paraíba, o Cícero Araújo, peão de obra, que não deu mais notícias à mãe, desesperada pelo sumiço do filho?'. A pergunta/senha para vagar impunemente pela cidade veio dos inúmeros casos de gente desaparecida com que me deparo pela vida afora", escreveu a autora em um texto para o Suplemento Literário Pernambuco no qual conta a experiência de passar 14 dias perambulando por solo porto-alegrense.

Escritora dos marginalizados

Toda essa vida e obra centradas nos que estão à margem da sociedade fizeram com que, antes de vencer uma das principais categorias do Jabuti, Maria Valéria fosse a homenageada da Flipobre, o festival dos escritores que se consideram marginalizados pelo sistema literário, que aconteceu no começo de novembro com mesas exclusivamente virtuais. "Foi uma feliz coincidência. O fato de ela ter sido premiada é uma surpresa, já que Valéria não está na lista dos escritores badalados. Ser marginalizado tem vários significados e, no caso dela, o fato de viver fora do eixo reforça essa ideia", diz Menezes, também um dos criadores da Flipobre.

Para ele, o reconhecimento oferecido pela CBL honra o tipo de literatura que a autora faz, bem como a temática com a qual trabalha. "Desde o primeiro livro, 'Vasto Mundo', percebe-se uma literatura de observação resultante do contato dela com personagens reais. E o mais interessante é ela em nenhum momento cair na tendência do momento de fazer auto-ficção".

Este não é o primeiro Jabuti de Maria Valéria: ela já tinha vencido duas vezes o prêmio com o infantil "No Risco do Caracol", em 2009, e o juvenil "Ouro Dentro da Cabeça", em 2013. A autora ainda concorre ao Jabuti desde ano nas categorias Melhor Livro de Ficção e Melhor Livro de Não Ficção, que serão anunciados no dia 3 de dezembro.