Atores negros lutam contra preconceito e estereótipos no teatro
O Dia da Consciência Negra, celebrado nesta sexta (20), é momento de refletir sobre o lugar que os atores negros ocupam na cena teatral contemporânea. Se na televisão e no cinema ainda faltam bons papéis para eles, no teatro, infelizmente, a situação se repete.
Artistas negros ouvidos pelo UOL reclamam de um preconceito muitas vezes velado por parte de produtores e diretores e até de colegas de elenco. Diante das poucas oportunidades, muitos se juntam e criam grupos teatrais que propõem a discussão do negro no palco, caso de Os Crespos, Coletivo Negro e Grupo Clariô de Teatro, por exemplo.
Apesar de o teatro ter a característica de poder ser um questionador social, muitos espetáculos preferem repetir no palco o lugar de opressão social do negro 127 anos após o fim da escravidão no Brasil, dando aos artistas negros papéis estereotipados.
Na cena comercial, peças com protagonistas negros ainda são minoria, como é o caso de "O Topo da Montanha", com Lázaro Ramos e Taís Araújo, "Mudança de Hábito - O Musical", com Karin Hils, e "Otelo", com Samuel de Assis, as três em cartaz em São Paulo.
Se o cenário é cruel, a conscientização cresce a cada dia, com artistas negros articulados e cada vez mais posicionados, impondo à cena teatral a discussão desta temática. Exemplo disso é o debate sobre o negro e o imigrante no teatro brasileiro contemporâneo, previsto para esta sexta (20), às 20h30, na SP Escola de Teatro da praça Roosevelt, evento parte do festival Satyrianas.
Ações contra o preconceito também são cada vez mais frequentes. O ano de 2015 viu polêmicas raciais nos palcos, como quando o grupo Os Fofos Encenam utilizou a prática racista do blackface na peça "A Mulher do Trem", em maio último. A repercussão negativa da apresentação no Itaú Cultural foi tão forte que a obra foi cancelada.
A questão do blackface ressurgiu em outubro, quando o ator Leandro Melo, que não é negro, divulgou foto com o rosto pintado de preto e vermelho no cartaz da peça carioca "Satã - Um Show para Madame". Apesar de a comunidade negra ter demonstrado indignação com a imagem, o ator manteve o cartaz acusado de racista.
"Ditadura da brancura"
Sidney Santiago, ator do grupo Os Crespos, formado por artistas negros saídos da EAD (Escola de Arte Dramática) da USP (Universidade de São Paulo), lembra que em 1950 o dramaturgo Nelson Rodrigues, instigado por Abdias Nascimento, ícone do teatro negro brasileiro, escreveu um artigo na revista Quilombo sobre lugar do negro no teatro de então. Pouca coisa mudou 65 anos depois, aponta o ator.
"Hoje, um intérprete negro enfrenta a mesma questão: a invisibilidade! Os negros continuam apartados de uma forma geral do sistema cultural, mesmo diante da dinâmica do crescimento que tivemos no Brasil. Uma população pobre passou ter acesso a bens e determinados espaços, contudo permanecemos ausentes da cena", diz.
Santiago lembra que, apesar do aumento de alunos negros nos cursos de artes cênicas, o mercado teatral ainda não os absorve. "Os intérpretes negros vivem uma situação singular e ousaria a dizer trágica. Como se inserir em um mercado que não consegue olhar e problematizar sua diversidade cultural?".
O artista, que na TV fez a novela "Caminho das Índias", na Globo, e estará em "Escrava Mãe", próxima trama da Record, afirma que muitas peças do circuito comercial ainda têm "imaginário eurocêntrico".
"Nossas montagens ainda vivem a ditadura da brancura. O elemento negro é solicitado esporadicamente para representar papéis viciados e que são comprometidos com uma ideologia que é racista", aponta Santiago.
"Nunca um Rei Lear, um Hamlet"
Jé Oliveira, ator, dramaturgo e diretor do Coletivo Negro, lembra que a questão da presença do negro na cena é discutida pela classe em todo o Brasil. Recentemente, participou de um processo artístico com o artista mineiro Alexandre de Sena em Belo Horizonte, tocando neste assunto no Festival de Cenas Curtas do Grupo Galpão.
"As questões estão fervilhando em BH, onde existe uma população negra e jovem política e artisticamente com muita coisa a dizer", diz, lembrando que nomes como Maurício Tizumba e João das Neves sempre levantaram questões negras nos palcos da capital mineira. "Em Salvador, o Bando de Teatro do Olodum e novos grupos também estão fazendo um trabalho sério", recorda o artista.
Oliveira, que estuda ciências sociais na USP, afirma que muitas vezes o preconceito com o ator negro acontece de forma velada, "mas nem por isso menos danosa". E lembra que quando o negro consegue um papel em peças do circuito comercial, os personagens são pouco aprofundados e marcam estereótipos: "a mulata fogosa, o bandido, o velho pai João, a mucama, a velha escrava sábia ou com mais frequência as empregadas domésticas no caso das mulheres e os motoboys no caso dos homens. É sempre esse tipo de convite, nunca convidam para um Rei Lear ou um Hamlet".
Santiago concorda com o colega, lembrando outros perfis comumente oferecidos a atores e atrizes negros: "A mulata gostosa, a empregada fofoqueira, o 'negro de alma branca', o moleque de recados, todos caricaturas esvaziadas e risíveis", complementa. Mas ele vê esperança: "Hoje, em função de vários fatores, está se tornando imoral trazer estes personagens para a cena. Temos um público atento e que não tolera mais que determinadas representações se perpetuem", espera.
Piadas racistas
A atriz Naloana Lima, do Grupo Clariô de Teatro e da banda Clarianas, tem discurso semelhante e diz que o artista negro precisa "cavar espaço nas brechas desse sistema". Ela afirma que grupos como o dela buscam criar "novas formas poéticas de expressar" na intenção de "preencher lacunas acerca da nossa história".
"Aos poucos vamos elaborando um conceito de uma arte que nos represente de fato, mas esse cenário artístico ainda esta bem longe de ser o ideal", pondera.
Na visão de Lima, o preconceito "muitas vezes vem em uma palavra, ou gesto que 'sem querer' atores e diretores brancos reproduzem em piadas clássicas racistas, que antes poderiam ser cômicas, mas que hoje causam dor e repulsa".
E lamenta que alguns negros acabem representando no palco algo que é contra eles próprios. "São negros que não se reconhecem como negros e seguem estereotipando a si mesmos no palco em nome do riso raso. O cenário ainda é triste. Mas é sabido que muito ainda há de se fazer para quebrar esses preconceitos", aponta.
"Potentes e talentosos"
Um alento vem também de grupos multiétnicos que se preocupam em dar destaque ao negro. Caso do Teat(r)o Oficina, conduzido desde 1958 por José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que preza pela diversidade em cena. Integrante da trupe, o ator Tony Reis se sente acolhido e lembra que lá sempre encontrou bons papéis. Inclusive na peça que estreia nesta data fatídica.
"Em 'Mistérios Gozósos', que o Oficina estreia neste Dia da Consciência Negra, temos oito negros em cena, todos atuando com personagens principais. Eu mesmo, serei Pilatos", revela.
Reis lamenta que esta não seja a realidade para todos. E lembra que o preconceito ainda existe, como evidenciado recentemente por um e-mail da produtora +Add Casting enviado a atores, que dizia ser "difícil encontrar negros bonitos" para integrarem o elenco da série "3%", produzida para a NetFlix, que repudiou a mensagem e pediu desculpas aos artistas negros.
Na visão de Jé Oliveira o caso foi "tão grave que eles conseguiram juntar em poucas linhas do conteúdo da mensagem todos os tipos de desumanização praticados por séculos aqui no Brasil".
Tanto Oliveira, quanto Lima e Santiago esperam dias melhores. E creem que falar do assunto e buscar um novo lugar para o negro no palco contribui para isso. E é Reis quem sintetiza o sentimento presente: "Além de lindos, há muitos atores negros potentes e talentosos para a cena". Só não vê quem não quer.
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