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Em HQ premiada, israelense trata da questão Israel x Palestina com sutileza

Ramon Vitral

Colaboração para o UOL, em São Paulo

09/11/2015 12h37

Ao longo dos pouco mais de 20 mil km² do território israelense há apenas duas lojas especializadas em histórias em quadrinhos e apenas quatro autores profissionais de HQs. A fonte dessas informações é a artista israelense Rutu Modan, uma dessas quatro quadrinistas locais.

“Você nunca ouviu falar nada sobre a cena de quadrinhos de Israel porque ela é praticamente inexistente”, explica a autora em entrevista ao UOL. Ainda assim, Modan assina um dos gibis mais premiados no mundo nos últimos anos. Recém-lançado no Brasil, "A Propriedade" ganhou o prêmio Eisner de Melhor Graphic Novel de 2013, o principal troféu da premiação máxima da indústria de quadrinhos norte-americana.

As 222 páginas do álbum contam a história de uma jornada feita pela jovem israelense Mica. Logo após a morte de seu pai, ela acompanha a avó em uma viagem para Varsóvia. Juntas, elas pretendem reaver um prédio que pertenceu à família e foi abandonado em 1940, com o despertar da Segunda Guerra Mundial. Ambientado no intervalo de uma semana, o livro mostra a desconstrução dos entendimentos da protagonista em relação às suas origens.

Os judeus foram expulsos da Europa e suas propriedades foram tomadas pelos poloneses. Os judeus foram para a Palestina, expulsaram os palestinos e tomaram suas casas. É uma tragédia que segue acontecendo de forma contínua ao longo da história.
Rutu Modan, quadrinista israelense

Modan brinca com as expectativas de seus leitores ao criar um enredo repleto de mensagens implícitas ao contexto político israelense. “Os judeus foram expulsos da Europa e suas propriedades foram tomadas pelos poloneses. Os judeus foram para a Palestina, expulsaram os palestinos e tomaram suas casas. É uma tragédia que segue acontecendo de forma contínua ao longo da história”, conta a quadrinista. Segundo ela, o enredo pouco explícito em relação ao confronto entre israelenses e palestinos surpreende os leitores que esperam um posicionamento da autora.

“Sou questionada constantemente sobre o por que dos meus quadrinhos não tratarem do nosso contexto político, mas nunca por israelenses. Eu entendo essa expectativa. Também acho que as pessoas ficam ansiosas para entender ‘o que está acontecendo por aí’ e porque não podemos resolver o problema como seres humanos normais. Talvez elas esperem que eu possa explicar todo esse contexto pelos meus quadrinhos. Peço desculpas, mas não posso. É ainda mais confuso e assustador viver essa realidade do que acompanhar pela televisão”, diz a quadrinista.

Aos 49 anos, Modan é professora de ilustração em duas academias de artes, uma em Jerusalém e outra em Tel Aviv, onde mora com o marido e dois filhos. Durante o período de produção de "A Propriedade", ela foi três vezes a Varsóvia para pesquisar sobre o ambiente e os personagens de seu livro. Ilustrado a partir de registros fotográficos feitos pela autora e com cores de poucas nuances, o álbum também serviu para conectar a artista ao passado de sua família.

Apesar de ser uma ficção, a obra é inspirada parcialmente em experiências vivenciadas pela quadrinista: “Quando comecei a escrever eu não sabia nada sobre a Polônia, mesmo que minha família tenha vindo de Varsóvia e meu pai tenha nascido lá. Por causa do trauma do holocausto, minhas avós nunca falavam sobre a Polônia, minha família ‘apagou’ suas raízes e nunca olhou para trás. Eles não falavam polonês e nunca mencionavam o passado”. 

Sou questionada constantemente sobre o por que dos meus quadrinhos não tratarem do nosso contexto político, mas nunca por israelenses. Eu entendo essa expectativa. Talvez elas esperem que eu possa explicar todo esse contexto pelos meus quadrinhos. Peço desculpas, mas não posso. É ainda mais confuso e assustador viver essa realidade do que acompanhar pela televisão.
Rutu Modan, quadrinista israelense

A experiência de Mica no enredo do quadrinho reflete um pouco desse descobrimento de Modan em relação às histórias de seus familiares. Aos poucos, a personagem vai desvendando os interesses escusos de sua avó por trás da ida à capital polonesa. Em meio a passeios solitários por vizinhanças que compuseram o maior gueto judaico estabelecido pelos nazistas na Polônia durante o Holocausto, a jovem conhece moradores locais e cria amizade com um quadrinista.

“Como uma escritora e ilustradora, às vezes eu me sinto como uma ladra. Eu roubo as histórias das pessoas, eu roubo a aparência delas. Eu desenho essas pessoas, uso as falas delas, faço piada com elas e elas acabam nem sabendo disso. Eu sento com uma pessoa, ela me conta uma história pessoal e estou realmente interessada, mas, ao mesmo tempo, eu sei como utilizar aquilo em uma história…Ao fazer de um personagem um quadrinista, eu estava fazendo piada comigo e talvez até me criticando um pouco”, revela.

Candidato potencial às primeira posições de muitas listas de melhores quadrinhos lançados no Brasil em 2015, "A Propriedade" é uma aula de narrativa na qual Modan aplica o que diz ser sua principal sugestão a jovens aspirantes a uma carreira como quadrinistas: “Meu melhor conselho é que a pessoa tente descobrir o que distingue o trabalho dela dos outros artistas, tanto em estilo quanto nas histórias que ela conta. Use as histórias da sua família, sua cultura, sua vizinhança, sua família, você. E a coisa mais importante é não ter medo de contar a verdade mais desagradável e audaciosa possível. Porque o desagradável é mais interessante e dramático que o agradável. As pessoas gostam e se identificam com sentimentos reais. Elas não só perdoarão seus erros como também vão amar você por eles”. 

A Propriedade
Autora
: Rutu Modan
Editora: WMF Martins Fontes
Preço: R$ 69,90
Páginas: 222