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"Nuvem de Lágrimas" aposta em memória caipira para conquistar plateia

Miguel Arcanjo Prado

Colaboração para o UOL, em São Paulo

06/11/2015 18h12

Na sessão de estreia para o público, na noite de quinta-feira (5), a plateia do Teatro Bradesco, em São Paulo, cantarolou, baixinho, boa parte das músicas do repertório de "Nuvem de Lágrimas - O Musical", embalado por sucessos da dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó.

O enredo se passa em 1991 numa cidade do interior e conta a história de duas irmãs que formam uma dupla caipira ao mesmo tempo em que trabalham na cooperativa rural da família, produzindo geleia. Cada uma delas se apaixona por um jovem rico, e o conflito desses dois amores impossíveis num primeiro olhar é a tensão dramática da obra, cujo foco maior parece ser render homenagem à música e à vida do campo.

A peça foi escrita por Anna Toledo, que já havia feito o musical "Vingança", com as músicas de Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Agora, trouxe para si a missão de transpor elementos do romance "Orgulho e Preconceito", publicado em 1813 pela inglesa Jane Austen, para o mundo rural. O resultado é uma trama açucarada, com jeito de folhetim do horário vespertino.

O público parece se deliciar: na estreia, reagia com generosas risadas às piadas do texto, ou até chorava copiosamente nas cenas mais românticas --não faltaram casais assistindo à peça de mãos dadas.

Em certos momentos, a ponte com o romance inglês soa exagerada, como na cena de baile pomposo aristocrata que destoa do tom campestre da maioria do espetáculo. Mas isso não afugentou o público, que encheu a maioria das cadeiras do teatro e acompanhou o desenrolar da história com suspiros e aplausos ao fim de cada música.

O espetáculo investe em canções hits de FM e que fazem parte do inconsciente coletivo de boa parte da população brasileira. Assim, mexe com memórias afetivas de cada espectador. Luciano Andrey, que assina a direção geral com Tania Nardini, parece ter familiaridade com o jogo emocional que propõe. "Fui criado em Bofete, no interior de São Paulo, e minha mãe cantava música sertaneja de raiz", disse ao UOL, evocando suas recordações de infância.

Culturas próximas

As músicas do campo soam nas vozes dos protagonistas Bete e Darci, vividos por Gabriel Sater e Lucy Alves. Sater foi criado no meio. "Música caipira é minha base", atesta ele, estreante nos palcos e crescido entre o pai Almir Sater, e os "tios" Renato Teixeira e Sérgio Reis. Outra estreante no teatro é Lucy, vinda da Paraíba e que despontou para todo o Brasil ao ser finalista do programa "The Voice", na Globo.

Logo após o fim do espetáculo, ela contou que teve de se familiarizar com o repertório, que conhecia, mas não cantava. "A cultura sertaneja caipira de São Paulo é muito próxima da cultura sertaneja do Nordeste. Para mim, é muito familiar cantar o homem do campo, sua relação com a terra, com viver do que planta, com a família".

Lucy revela que o mais difícil foi trocar no palco o sotaque paraibano pelo acento típico do interior paulista. "Eu penei, principalmente com o 'r', porque falo de uma forma aberta. Levei muito puxão de orelha", lembra, sorrindo. "Para o Gabriel foi bem mais fácil, ele já fala porrrta! [risos]". Apoiada pelo colega, Lucy vê "Nuvem de Lágrimas" como "a história do orgulho de ser caipira". "É bonito ser caipira, como é bonito ser nordestino".

A autoafirmação interiorana também é apontada pela atriz Adriana Del Claro como força do musical. Ela interpreta a irmã Jane, que forma dupla com Bete. "Temos essa coisa de raiz, de amar de onde viemos. Acho que muita gente se identifica com o musical por isso e pelas músicas de Chitãozinho & Xororó. Quem nunca cantou 'Evidências' ou 'Nuvem de Lágrimas'? Quem não se lembra de um amor?".

"Fio de Cabelo" e recordações

Memórias antigas passaram pela cabeça da funcionária pública Ana Maria de Carvalho. "Não resisti, porque a música de raiz me chama a atenção. Sou de Itapetininga e fui criada ouvindo tudo isso. Dá uma nostalgia, principalmente na música 'Fio de Cabelo'".

Sua amiga, a vendedora Jeruza Pereira do Carmo, tinha curiosidade em saber como cantava o filho do Almir Sater. "E também gostava da menina do 'The Voice' e adoro o filme 'Orgulho & Preconceito', achei a ideia de misturar tudo isso genial, gostei de tudo", disse a cearense de Iguatu radicada em São Paulo.

Também na plateia, o cantor Rafael Bernardo elogiou a temática brasileira. "Como a linguagem de 'musical da Broadway' já está estabelecida, é nossa oportunidade de falar da gente", pontua. Ao lado dele, o músico Yuri Oliver concorda. "Vim só pelo título, sem saber o que era. E me deparei com tudo isso e achei maravilhoso. Sou de São José dos Campos e, ouvindo essas músicas, me vieram muitas memórias de coisas que acabamos perdendo".

Diante da peça, memórias não faltam para a espectadora Helena Abi-Sâmara, aposentada de 87 anos. "Atualmente, não existe mais essa simplicidade que a peça mostra, nem no interior".