Atores investem até R$ 6.000 do próprio bolso para estar em um musical
Quem vê um ator interpretar, cantar e dançar num grande musical nacional não imagina o esforço e o dinheiro que ele investiu para chegar até lá. Em São Paulo, atores gastam até R$ 6.000 por mês para estar com tudo em cima quando a oportunidade para entrar para o elenco de uma dessas megaproduções aparecer.
Se no começo dos anos 2000 eram raros os atores preparados para musicais, hoje centenas deles disputam cada papel. Todos de olho nos bons salários no país em que teatro, muitas vezes, é feito por "amor à arte". Grandes musicais pagam acima dos R$ 4.000 para quem é do coro; um protagonista pode embolsar mais de R$ 30 mil.
Mas a realidade não é a mesma para todos. Além de variar de acordo com cada produção, o salário só é pago com as peças em cartaz — durante os ensaios, a praxe é pagar metade. E o preparo exigido pode cair por terra se uma estrela da TV, chamariz de bilheteria farta, surgir de uma hora para outra no elenco, desbancando gente mais bem preparada, mas que ainda não atrai os flashes.
Preparo de atleta
O ator Luiz Araújo, formado pela Escola de Arte Dramática da USP (Universidade de São Paulo), gasta em média R$ 6.000 para se manter pronto para qualquer papel. No mercado de teatro há 20 anos, dos quais dez focado em musicais, ele protagoniza "Lisbela e o Prisioneiro", ao lado da colega Ligia Paula Machado, em cartaz no Theatro NET Rio, após temporada paulistana.
"Minha vida gira em torno de estar bem para trabalhar. Musical não existe sem disciplina", conta. Para isso, se alimenta bem, malha, dorme oito horas por dia e descansa a voz. "Fora tratamentos estéticos e de saúde, leitura de livros, ingressos para cinema e teatro, aulas de expressão corporal, de dança, de voz... Preciso fechar o mês com pelo menos R$ 6.000 para arcar com tudo", revela. Tanto investimento já lhe teria rendido "um belo de um apartamento", conclui.
No elenco de "Raia 30 - O Musical", espetáculo com a atriz Claudia Raia, os atores Rodrigo Negrini e Marilice Cosenza sabem o preço que investiram por cada personagem do currículo.
Negrini, mineiro de Poços de Caldas que mudou-se para São Paulo para realizar seu sonho de artista, conta que é preciso "ter preparo físico de atleta". Com músculos definidos e barriga tanquinho, seus gastos vão além das tradicionais aulas de canto, dança e interpretação. "Meu corpo é minha ferramenta de trabalho. Temos de estar sempre com a aparência bem cuidada, a forma física em dia, com uma musculatura que aguente o tranco, e ainda ter um bom agente ou assessor e um book atualizado", afirma.
Marilice Cosenza é artista desde os três anos, quando começou no balé. Só com canto e dança, gasta hoje R$ 500 por mês. E nem tenta calcular o quanto já gastou. Sabe que é impossível. "Meus pais foram os primeiros a investir em mim e, depois que me tornei financeiramente independente, assumi essas contas."
A atriz lembra que, para o ator, o preparo jamais tem fim. "Não tem essa de falar, 'já fiz aula de canto e já está bom'. Se você não exercita os músculos diariamente, inclusive o da voz, eles te deixam na mão quando você precisa", alerta.
Assim como outros colegas mais experientes, ela precisa lidar com a tormenta dos novos concorrentes. "A nova geração de atores de musicais está cada vez mais bem preparada. Então, se você não investe, pode perder o papel para um ator mais novo e melhor preparado que você", diz.
Por isso, não economizou quando soube que seria protagonista de "Avenida Q" no Brasil. Foi para Nova York conhecer a versão norte-americana "para sentir a técnica e a energia" dos gringos. E chegou a uma conclusão: "Nós brasileiros somos mais intensos".
"Mais não do que sim"
Um dos dramas dos os atores de musicais é receber 50% do salário no período de ensaios. "É a época em que mais você precisa receber, porque não consegue fazer nada mais. Se a dedicação é 100%, por que o salário é só metade?", questiona Marilice.
Sua colega Sara Sarres, estrela de musicais brasileiros como "O Homem de La Mancha", "A Madrinha Embriagada", "O Fantasma da Ópera" e "Les Miserables", concorda. "Pagar metade do salário nos ensaios é um contrassenso. Porque é um período exaustivo, de oito a 12 horas por dia e apenas uma folga semanal durante três meses. Felizmente, algumas produtoras começam a mudar esta forma de pensar ", diz.
Sara também precisa desembolsar boa quantia de dinheiro. Seu gasto semanal se divide assim: uma aula de canto por R$ 200; duas aulas de balé por R$ 300 (R$ 150 cada), duas aulas de sapateado por R$ 300 (também R$ 150 cada), uma sessão de fonoaudiologia por R$ 250 e duas sessões de fisioterapia ou pilates por R$ 160 (R$ 80 cada uma). A somatória dá R$ 1.210 por semana ou cerca de R$ 5.000 por mês. E ela lembra que nesta continha não incluiu os cuidados estéticos, com alimentação ou algum preparo específico.
Bruna Guerrin, a protagonista de "Urinal, o Musical", em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental, em São Paulo, faz balé desde os quatro anos e aulas de música desde o jardim de infância e não se ilude: "Achar que vai ficar rico fazendo musicais é como jogar na Mega-Sena. Tem mais não do que sim", diz Bruna, com os dois pés engalfinhados no chão.
Seu atual diretor, Zé Henrique de Paula, parece concordar. Tanto que espalha aos quatro ventos que prefere atores preparados, do que figurinhas que só cantam e dançam. Por isso, não diferencia "atores"de "atores de musical". "A pecha de ator de musical precisa deixar de existir. O que importa é ser ator, e ponto. Precisamos de atores completos", explica.
Par romântico de Bruna em "Urinal", Caio Salay é um recém-chegado ao mercado feroz dos musicais. Ainda sem grande salário, aproveita os colegas que dão aulas para economizar em sua formação. Mesmo sob tanta pressão, mantém a cabeça no lugar. "Prefiro ser plenamente saudável e desempregado do que estar sempre doente no melhor espetáculo da cidade. Vejo atores que se esquecem de suas vidas pessoais, que pensam na carreira a todo momento, que adoecem na coxia e encenam a saúde no palco", alfineta.
Outra colega de elenco de Bruna e Salay, Luciana Ramanzini gasta R$ 600 por mês só com aula de canto e o curso de pilates. "Teatro é igual a piloto de avião, quanto mais horas de voo, melhor". Mas, reitera que não adianta ser bom só no palco. "O grande artista tem de ser um grande ser humano. As relações que na coxia têm de ser pautadas pela ética, generosidade, profissionalismo e amizade", ensina.
Fabio Redkowicz, também do elenco de "Urinal", reconhece que tantos investimentos não têm garantias. Mas, não desanima: "Quando se faz o que se ama a possibilidade de retorno é maior". Por isso, quando sobe no palco, revive a infância, quando se emocionava com desenhos-musicais. "Poder levar aquela emoção que sentia quando criança a outras pessoas é muito gratificante".
Thais Belchior, atriz do musical "BarbarIdade", em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, faz coro. Tanto que afirma investir 70% de seus rendimentos em sua própria carreira. E diz não se arrepender. "Faço o que amo. Vale a pena cada centavo".
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