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Escritoras condenam o termo "literatura feminina" e exigem igualdade

A escritora Simone Campos e seu livro "A Vez de Morrer" - Camila von Holdefer/Reprodução/Facebook
A escritora Simone Campos e seu livro "A Vez de Morrer" Imagem: Camila von Holdefer/Reprodução/Facebook

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

25/07/2015 07h00

Logo após a Feira Literária de Paraty (Flip), um debate teve início nos perfis de alguns leitores e escritores nas redes sociais. Eles questionam: existe a chamada literatura feminina? Se existir, o que exatamente ela é? É possível classificar a arte de acordo com o gênero sexual de quem a faz? Não seria a literatura algo feito simplesmente por seres humanos?

O UOL resolveu, então, entrar nesse debate e percebeu que, se não é possível chegar a uma resposta definitiva para perguntas tão amplas, algumas constatações são possíveis. Primeiro, é importante ressaltar a diferença que há entre alguns tipos de literatura, os feitos por mulheres, para mulheres e a respeito das mulheres, para que tenhamos as frentes de discussão bem delineadas.

Há quem tenha preferido abrir mão da conversa, como foi o caso da doutora em literatura Leyla Perrone-Moisés, que, após receber as perguntas da reportagem, respondeu, em um educado e-mail: “Literatura feminina, masculina ou GLT só existem do ponto de vista da temática. E como, para mim, a temática é apenas um aspecto da obra literária, sendo a outra a forma, não trabalho com o conceito de gênero. Clarice Lispector dizia: 'Quando escrevo, não sou homem nem mulher. Sou homem e mulher'”.

Marta Barcellos

  • Reprodução/Facebook

    Há preconceito com a literatura escrita por mulheres, porque o machismo ainda está enraizado na sociedade, em todos nós. O nome de uma escritora na capa do livro, ou mesmo o ponto de vista de uma protagonista mulher na obra, ainda desperta no leitor, no crítico, nos jurados dos concursos literários, nos organizadores de eventos, uma ideia difusa de que se trata de algo 'menor', 'menos universal' do que aparenta ser uma 'narrativa masculina'

    Marta Barcellos, escritora

A escritora Ivana Arruda Leite, autora de obras como “Hotel Novo Mundo” e “Cachorros”, já é mais enfática. “Se existe uma literatura que se nomeia feminina, ela é da pior qualidade e não merece sequer entrar no rol da produção literária digna desse nome. Se formos por esse caminho, começamos a classificar a literatura em feminina, masculina, gay, negra, da periferia, feminista, socialista, católica, dos caminhoneiros, dentistas, canina, bovina e por aí vai.”

Simone Campos, que escreveu “A Vez de Morrer”, dentre outras obras, por sua vez, começa a enxergar alguns vieses na definição. “Nossa literatura é formatada por nossas experiências. E quando se fala que literatura feminina ou feminista não existe, pode parecer que a experiência particular de autoras mulheres no mundo não difere da dos homens. E como difere!”, diz. “Temos muito mais experiência direta com conflitos causados pelo machismo”, exemplifica, ressalvando que “não é que mereçamos ‘atenção especial’, mas a mesma atenção seria mais do que justo”.

Indo além do existir ou não a literatura feminina, o que o UOL pôde apurar é que, independente de rótulos, é preciso que se discuta a maneira como a arte feita por mulheres é recebida.

A luta por espaço

A princípio, o sexo de uma pessoa não deveria ser importante quando falamos de literatura. “O adjetivo 'feminina', pra mim, não é nada mais do que uma referência ao gênero do autor, ou da autora, no caso. Quanto à classificação, os livros escritos por mulheres são simplesmente literatura”, diz Ivana.

No entanto, o mundo ideal e o real são muito diferentes. Por isso, o termo em questão pode servir de ponto de partida para que se discuta o espaço das mulheres em tudo o que envolve o universo literário, desde a publicação de livros, passando pela conquista de prêmios e chegando à participação em eventos.

Segundo Maria José Silveira, romancista que recentemente lançou “De Onde Vêm as Histórias”, no qual faz reflexões sobre literatura e dedica um capítulo a esse assunto, a separação entre masculino e feminino não passa por nenhum crivo rigoroso, sendo “um método importado de outras ciências pelos estudiosos da literatura, talvez por uma suposta e equivocada necessidade prática. Equivocada porque, em sua ânsia de separar, classificar e arrumar, perde o foco principal e se torna estéril”. Para ela, embora intencional, esse tipo de classificação contribui para que ainda hoje exista preconceito com relação às mulheres escritoras. “Vemos essa discriminação cotidianamente, nas listas que se fazem, na distribuição dos espaços literários, nos convites que são feitos, na meritocracia que se estabelece. É algo ideológico, insidioso, mal percebido e que, no entanto, se reproduz em inúmeras esferas. Poucos escapam disso.”

Simone Campos

  • Reprodução/Facebook

    Teve uma vez que o entrevistador me gritou 'de brincadeirinha': 'Tira a roupa!', enquanto outro entrevistador se recusava a me dirigir a palavra, sentando-se sobre o microfone... Um terceiro mediador tentava salvar o que podia, coitado

    Simone Campos, escritora

Marta Barcellos, uma das vencedoras do Prêmio Sesc de Literatura deste ano na categoria Contos com “Antes que Seque”, corrobora o discurso de Maria José. “Há preconceito com a literatura escrita por mulheres, porque o machismo ainda está enraizado na sociedade, em todos nós. O nome de uma escritora na capa do livro, ou mesmo o ponto de vista de uma protagonista mulher na obra, ainda desperta no leitor, no crítico, nos jurados dos concursos literários, nos organizadores de eventos, uma ideia difusa de que se trata de algo 'menor', 'menos universal' do que aparenta ser uma 'narrativa masculina'.”

Em cinco das 24 narrativas breves que compõem sua premiada obra, Marta adota o ponto de vista de homens, sendo três desses contos escritos em primeira pessoa. Segundo ela, para aumentar as chances de ganharem prêmios, é comum que muitas escritoras construam suas histórias com protagonistas homens e até mesmo adotem pseudônimos masculinos.

“Tira a roupa”

Sobre os eventos literários que se espalham pelo país, quem fala é Simone Campos. Ela conta que é comum ver mesas que agrupam certas minorias, como negros, homossexuais ou as próprias mulheres, como uma espécie de “cota” para esses grupos. Apesar de ressaltar que quer ser chamada para “mesas mistas, com temas diferentes de 'feminino'”, a escritora afirma que essas reservas podem ter sua importância. “É melhor do que nada, mas é uma solução precária. Eu mesma já participei de uma antologia só de autoras, mas prefiro não ser considerada nicho, e, sim, um ser humano como qualquer outro.”

Recordando-se de mesas que já participou, Simone lembra algumas desagradáveis experiências que estão diretamente relacionadas ao seu sexo. “Teve uma vez que o entrevistador me gritou 'de brincadeirinha': 'Tira a roupa!', enquanto outro entrevistador se recusava a me dirigir a palavra, sentando-se sobre o microfone... Um terceiro mediador tentava salvar o que podia, coitado. Às vezes, sou agrupada com mulheres que fazem literatura bem diferente umas das outras, e a mesa não rende nada, pois não temos sobre o que conversar. 'E aí? Somos mulheres, hein? Temos um útero, hein? Legal, hein?'. Mas também, quem cura os curadores? Por que quase sempre são homens? Pois é...”.

Literatura feminista?

Ao falar de uma literatura engajada em questões relacionadas às mulheres, assumindo um posicionamento que poderia ser considerado feminista, Simone reconhece que ela existe, embora diga que “geralmente, como em toda literatura engajada, fica didática e chata, a serviço daquele objetivo”.

Ivana tem opinião semelhante. “Pra mim, qualquer autor que empunhe uma bandeira que se sobreponha ao ofício literário deixa de ser escritor e passa a ser militante. Sai do terreno da literatura e entra na política. Não que não haja política na literatura, claro que há, mas é a questão da prevalência. A literatura não pode estar a serviço de nada que não ela mesma.”

maria José

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    É um tipo de produção de entretenimento de segunda linha, digamos, que atende a um público ainda formado no meio de valores mais tradicionais, ainda muito contraditório, ainda muito voltado para um arquétipo feminino ultrapassado, e que, espero, deixe de existir em um futuro a médio prazo. Por enquanto, ele existe --e ainda parece forte

    Maria José Silveira, escritora

Feminista convicta, Marta também dispensa a literatura como alicerce para questões ideológicas: “Não acredito em literatura engajada, então pra mim também não existe literatura feminista”. Indo além, a vencedora do Prêmio Sesc abre espaço para mais um desdobramento do debate e diz também não acreditar em literatura feita para mulheres. “Existem livros escritos para mulheres, mas aí não se trata de literatura. Simples assim.”

Livros para elas?

Desde clássicos da subliteratura de banca como “Sabrina” até os atuais soft porns da linha de “50 Tons de Cinza”, sem esquecer obras da estirpe de “Comer, Rezar e Amar”, é comum nos depararmos com livros rotulados como “para mulheres”. “Esse rótulo de 'livro de mulherzinha' é extremamente pejorativo e, muitas vezes, está por trás do debate sobre 'literatura feminina' sem nos darmos conta. Ninguém vai acusar um romance com o tema de guerra de ser muito 'homenzinho', não é mesmo? Já as escritoras mulheres temem esse tipo de rótulo, precisam sempre provar que não são 'mulherzinha'”, argumenta Marta.

Maria José lembra a coleção “Menina e Moça”, com livros de M. Delly, publicada nas décadas de 1940 e 1950, para explicar que “uma produção literária escrita especificamente para o público feminino, com livros que se equilibram com certa dose de erotismo e romantismo” existe há tempos e continua presente nas livrarias. “É um tipo de produção de entretenimento de segunda linha, digamos, que atende a um público ainda formado no meio de valores mais tradicionais, ainda muito contraditório, ainda muito voltado para um arquétipo feminino ultrapassado, e que, espero, deixe de existir em um futuro a médio prazo. Por enquanto, ele existe –e ainda parece forte. E, se existe, que cada pessoa tenha direito a ler os livros de que gosta. Democracia é também isso.”

Ivana

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    Se são livros escritos para mulheres, eu detesto e passo longe. Não posso nem pensar numa obra literária de respeito voltada para o público feminino. Não li '50 Tons' e não gostei, por princípio. Abomino esse tipo de livro e não acho que ele traga vantagem alguma para a literatura. Nem novos leitores, nem nada

    Ivana Arruda Leite, escritora

Reconhecendo essa produção editorial “voltada para elas”, apoiada no arquétipo de que a mulher é “sentimental por natureza”, Simone lembra que “por muito tempo, a verba de publicidade das editoras era para mulheres escrevendo sobre ‘temas de mulher’ e homens escrevendo sobre 'tiros e explosões'”. Mas isso está mudando. A autora de “A Vez de Morrer” aponta que, atualmente, escritoras e personagens femininas que fogem desse estereótipo vêm conquistando o reconhecimento do público e, inclusive, liderando listas internacionais dos mais vendidos, como é o caso de “Garota no Trem”, de Paula Hawkins, romance policial recém-lançado no Brasil que tem como protagonista uma alcoólatra acima do peso.

Por fim, Ivana tem uma opinião mais direta sobre o tema. “Se são livros escritos para mulheres, eu detesto e passo longe. Não posso nem pensar numa obra literária de respeito voltada para o público feminino. Não li '50 Tons' e não gostei, por princípio. Abomino esse tipo de livro e não acho que ele traga vantagem alguma para a literatura. Nem novos leitores, nem nada. Público tem, porque no mundo tem gosto pra tudo. Uns gostam de sertanejo, outros de Romero Brito, outros de '50 tons'.”