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Virada Cultural 2015 foi Virada da Regressão: mais humanizada, menos ousada

Jotabê Medeiros

Do UOL, em São Paulo

22/06/2015 05h00

A Virada Cultural de 2005, a primeira, veio como uma promessa conselheirista: ao povo de São Paulo, tudo seria concedido durante uma noite. Rios de leite e barracas de cuscuz. Essa promessa se espalhou pelo país, trazendo caravanas de Sem-Shows para a paulicéia, o que inchou o evento. Em um determinado momento, tínhamos 5 milhões de pessoas nas ruas.

A Virada de 2007 foi a do nervo exposto: os Racionais contra o mundo, um conflito fartamente anunciado do preconceito contra as periferias, que enfim era reproduzido no centro expandido, na Sé. A Virada de 2013 foi a do alerta: arrastões se banalizaram, polícia foi negligente, bandidos foram diligentes e o pânico se instalou. Não havia lugar seguro.

A Virada de 2015, face a esse histórico de dez edições anteriores, pode ser definida como a Virada da Regressão: buscou voltar atrás em vários passos. Voltou a ter um tamanho humanizado, passou a cuidar melhor da segurança e do transporte. Voltou a ter controle de curadoria. Perdeu entretanto, talvez pela cautela excessiva, o ímpeto de programação. Foi menos ousada, buscou menos o novo e a surpresa.

Passado sem displicência

"Você dirige o automóvel, eu lhe dirijo argumentos", dizia a canção "Atropelamento e Fuga", da ressuscitada banda oitentista Akira S e As Garotas que Erraram, que brilhou com poucas, mas entusiasmadas testemunhas na Avenida Rio Branco. Era mais moderna que o seu tempo, os anos de 1980, e continua sendo, mas seu estranhamento já é agora pura celebração.

O passado, que sempre foi tratado com displicência na Virada, com shows com som ruim (Marina Lima e Ritchie sofreram em edições anteriores) e palcos de segunda linha, teve sua grande revanche nessa edição. "Pela primeira vez nesses últimos meses, São Paulo não me decepcionou", disse Jerry Adriani, festejando a recepção popular que embalava os coros de sua Jovem Guarda regressiva. E no Palco Principal.

"A única vez que subi ao palco do Theatro Municipal foi com a banda do quartel, e a gente tocou Tchaikovsky, '1812 Overture'", revelou o guitarrista Edgard Scandurra, do Ira!, que saiu consagradoramente ovacionado de sua primeira chance real de gol no teatro.

Paulinho Boca de Cantor celebrou a sobrevivência de um estilo de vida, mais do que de um estilo musical, ao apresentar a canção que os projetou em 1969, "De Vera", após a participação no Festival da Record. Depois de tocar, contou: "Foi o primeiro sucesso dos Novos Baianos, mas aí caímos numa cilada. Somos Novos Baianos, porque acordamos todo dia novos em folha".

Brecha espacial múltipla

A Virada Cultural consolida seu papel de uma espécie de brecha espacial múltipla na vida brasileira. Brecha espaço-temporal ("Temporal rift", na ficção de "Jornada nas Estrelas"), onde o artista de um passado remoto que não achava mais seu público encontra ao menos um por uma noite. E o público que estava sem saber onde estava o tesouro sentimental de sua formação, reencontra tudo (quase) intacto na rua.

A Virada é uma brecha sociocultural, que aproxima as classes, que dá chance de o despossuído usufruir do showbiz por uma única vez, e tira de seu bairro niquelado o bacana encastelado.

É brecha gastrointestinal: o sanduíche de calabresa e o Martini Bianco convivem com a galinhada de grife e o vinho Errazuriz Malbec certificado. É brecha geopolítica, que vai à Brasilândia e às frisas do Municipal e que recebe com igualdade o travesti barbado e o fisiculturista bombado. 

"É um prazer rivotrílico, é um prazer lexotânico estar de novo em São Paulo", brindou o sardônico cantor Eduardo Dussek, no palco Arouche. "Tentei convencer a organizaçao da Virada a não me convidarem. Minha música é complicada, divide as opiniões: metade detesta e metade vai embora".

O humor e a diversão, que consagraram apresentações de artistas populares como a funkeira Ludmilla (atendendo o celular no meio da música, sentando no colo do fã), voltaram a dar as caras na Virada.

A dupla caipira Zé Mulato e Cassiano, que foi estrela do Palco República, explora, na canção "O Homem e a Espingarda", a surrada metáfora da potência sexual masculina --mas com uma graça tão antiga que ninguém consegue não rir da sua matreirice. "Uma espingarda, para dar um tiro entusiasmado, depende também da caça". Assim como a Virada depende também do seu público.