Ex-colaborador do "Charlie Hebdo" leva quadrinhos politizados à Flip
Já faz muito tempo que os quadrinhos deixaram de ser uma arte feita para crianças e passaram a também tratar de assuntos complexos e delicados. Provavelmente, o grande marco dessa transformação das HQs tenha sido o prêmio Pulitzer destinado a “Maus”, de Art Spiegelman, em 1992. O reconhecimento à graphic novel –na qual o autor abordava a relação com seu pai, um judeu sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, e a maneira como o velho lidava com os traumas provocados pelo nazismo— comprovou que os desenhos, quase sempre acompanhados por palavras, poderiam contar histórias com a mesma profundidade de um romance ou de um filme, por exemplo.
É nessa linha que se encaixa o trabalho de Riad Sattouf, quadrinista que colaborou durante oito anos com o semanário francês “Charlie Hebdo”, deixando-o três meses antes do atentado do início deste ano –assunto do qual se nega a falar. Sattouf está lançando no Brasil “O Árabe do Futuro – Uma Juventude no Oriente Médio (1978 – 1984)”, primeira graphic novel de uma trilogia autobiográfica, e é um dos convidados da Flip deste ano, onde dividirá uma mesa com o também quadrinista Rafa Campos.
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Hoje em dia, os quadrinhos se tornaram um meio de expressão maduro, que pode falar sobre tudo, igual a um romance
Nascido na França, terra de sua mãe, Sattouf passou parte de sua infância na Síria, país de seu pai, e na Líbia. Ao resgatar esse período que viveu entre os países, evidencia os contrastes culturais e políticos entre nações democráticas e as submetidas a regimes totalitários comandados por nomes como Muamar Kadafi e Hafez al-Assad, pai do atual ditador sírio Bashar Al-Assad.
“Hoje em dia, os quadrinhos se tornaram um meio de expressão maduro, que pode falar sobre tudo, igual a um romance”, diz o quadrinista em entrevista ao UOL. Pelo visto, o público tem aceitado bem essa proposta, tanto que “O Árabe do Futuro” frequentou durante muitas semanas a lista dos mais vendidos na França, ocupando, inclusive, a primeira posição. “Quando desenho minhas páginas, sempre penso na minha avó: ela conseguiria entender meus livros? Ela não sabe nada sobre quadrinhos, não os lê e muitas vezes os considera, com razão, para crianças. Isso é o que gosto: tentar fazer HQs para leitores que não leem quadrinhos e abordar questões atuais, da sociedade, falar sobre o nosso mundo. Isso se tornou algo normal para os quadrinhos modernos”, afirma o autor.
Os pares de Sattouf
Na mesma linha da obra de Sattouf, outra graphic novel já pode ser considerada um clássico: “Persépolis”, de Marjani Satrapi. Mais títulos, no entanto, começam a aparecer no mercado. Recentemente, a editora Nemo, por exemplo, lançou “A Metamorfose Iraniana”, a respeito do regime dos aiatolás no Irã e do radicalismo religioso. É da mesma editora a HQ “O Mundo de Aisha”, de Ugo Bertotti e Agnes Montanari, sobre a situação das mulheres no Iêmen e como algumas delas conseguem alcançar o protagonismo mesmo em uma sociedade profundamente machista.
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Penso que os quadrinhos são a primeira forma de a raça humana se expressar. Os homens nascem prontos para ler figuras em sequência. Nas cavernas da pré-história, desenhavam o passo a passo da caça, a perseguição, a execução, o comer...
São histórias geralmente embasadas em situações reais, algo bastante comum às graphic novels que tratam de temas extremamente delicados. Mergulhando em zonas de conflito, o jornalista Joe Sacco, por exemplo, já assinou títulos como “Palestina”, “Área de Segurança: Gorazde” e “Notas sobre Gaza”, que o colocaram como um dos nomes mais respeitados dos quadrinhos contemporâneos e deu destaque ao jornalismo em quadrinhos. Já Didier Lefèvre, Emmanuel Guibert e Frédéric Lemercier apostaram na junção dos desenhos com fotografias para, por meio da série “O Fotógrafo”, relatarem o cotidiano de membros da ONG Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão. Guy Delisle, por sua vez, utiliza as HQs para falar de suas experiências em países extremamente fechados, como Myanmar (em “Crônicas da Birmânia”) e a Coreia do Norte (em “Pyongyang”).
HQ como forma de escrita
Ao falar sobre o poder que as HQs podem ter, Sattouf lembra dos primórdios da humanidade para exemplificar como elas podem ser compreendidas por um grande número de pessoas. “Penso que os quadrinhos são a primeira forma de a raça humana se expressar. Os homens nascem prontos para ler figuras em sequência. Nas cavernas da pré-história, desenhavam o passo a passo da caça, a perseguição, a execução, o comer... Crianças estão lendo quadrinhos mesmo sem ser ensinadas. Mas os quadrinhos sofreram muito ao serem confinados aos jovens, já que são muito mais do que isso. Os japoneses compreenderam isso há muito mais tempo e hoje têm HQs de variedade e riqueza incríveis.”
Sobre o Brasil, Sattouf se desculpa por não conhecer nenhum quadrinista daqui, mas se mostra empolgado ao falar da Flip. “Me disseram que é o evento literário mais incrível do mundo, então estou muito feliz de poder participar dele. Espero encontrar leitores e autores com outros horizontes. É uma grande alegria e uma honra ser convidado junto de todos os ensaístas, romancistas, poetas... Porque isso significa basicamente uma coisa: quadrinhos são uma forma de escrita como qualquer outra.”
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