Scapin e Mamberti se reencontram no teatro, 20 anos após Castelo Rá-Tim-Bum
Passados 20 anos do programa infantil de sucesso “Castelo Rá-Tim-Bum”, da TV Cultura, os atores Cassio Scapin e Sergio Mamberti, que viviam os personagens Nino e tio Victor, respectivamente, voltam a trabalhar juntos, desta vez no teatro, em uma peça que fala sobre aceitação de diferenças, sejam de cunho religioso, sexual ou ideológico.
Na comédia dramática “Visitando o Sr. Green”, que estreou no fim de abril e fica em cartaz até 19 de julho no Teatro Jaraguá, em São Paulo, Scapin dirige Mamberti e o ator Ricardo Gelli. “Falei para o Cassio que a minha missão [no ‘Castelo’] era transformá-lo num bruxo, num mago. Aí está o certificado dele”, brinca o veterano, de 76 anos, que no palco interpreta um senhor de 86.
Scapin agradece o elogio do amigo e acrescenta, descontraído: “Acho que [estou pronto] sim. Mas a gente nunca sabe quando a varinha mágica vai realmente funcionar, quando a gente ganha ou perde poder”.
O ator de 50 anos já conhecia bem a peça do dramaturgo norte-americano Jeff Baron, pois encarnou por cinco anos o personagem Ross Gardner –que contracena com o protagonista, senhor Green– ao lado de Paulo Autran (1922-2007). A montagem foi dirigida por Elias Andreato e estreou em junho de 2000. Após a saída de Scapin, quem assumiu o papel foi Dan Stulbach.
“Esse foi o meu grande desafio, mudar o ponto de vista e partir de um material novo, com outros atores [Mamberti e Gelli]. Tive que esquecer as minhas referências para poder criar. Além disso, o texto já tem certas exigências de estilo, formato dramatúrgico e características dos personagens”, conta o ator, que faz sua estreia na direção de um grande espetáculo (antes, já havia comandado outros três menores).
“Mas [poder fazer uma nova montagem] é a grande vantagem do teatro, pois as pessoas não são donas de nada, cada uma é diferente da outra. E sou contra o modelo 'franchise' de interpretação, de fórmulas prontas. Assim, uma peça pode existir de diversas maneiras, várias vezes, sempre nova a cada oportunidade”, completa.
Sobre a segunda parceria com Mamberti, Scapin diz que o programa de TV –com suas constantes reprises– e a recente exposição no MIS (Museu da Imagem e do Som) sobre os 20 anos do “Castelo” dão a falsa impressão de que o ator veterano é realmente seu tio, e que eles são muito próximos. “A gente gravou só por um ano e meio, os contatos no estúdio foram muito pontuais, esporádicos. Mas a gente funcionou bem junto, isso ficou para o público”, destaca "Nino".
E, por incrível que pareça, o momento mais próximo dos dois foi agora, em dois meses intensos de ensaios. “Descobri que o Sergio é um grande contador de histórias. Ele tem um registro rico de um período do teatro brasileiro que é muito bom de ouvir, tem toda uma vivência, essa transmissão oral do conhecimento”, revela Scapin, que já havia visto Mamberti em cena algumas vezes, o que lhe serviu como fonte de inspiração. “Ele pertence a uma geração muito importante do teatro, que inclui o Paulo Autran e os ainda vivos Juca de Oliveira, Jô Soares, Fernanda Montenegro, Marília Pêra e outros”, cita.
Agora quem manda é o “Nino”
Depois de tanto tempo recebendo ordens de seu “tio Victor”, foi a vez de o “sobrinho” dar as cartas. “Não é fácil encarar um ator que só de carreira tem a minha idade, mexer com todo esse material humano. Sem dúvida, ele tem mais experiência de teatro que eu. Mas também é muito generoso para receber as minhas indicações e direções –não gosto da palavra ordem. E ele também fez algumas sugestões”, afirma Scapin.
Longe dos palcos há 12 anos, Mamberti diz que estava pensando em fazer algo comemorativo dos 20 anos do “Castelo Rá-Tim-Bum”, quando comprou os direitos de “Sr. Green”. “Eu e o Cassio tivemos uma relação muito bonita, afetiva e artística durante o processo do ‘Castelo’. E agora ele se mostrou um diretor extremamente maduro, sutil, de uma delicadeza enorme e capacidade para aprofundar os personagens. Isso comprova que ele já estava pronto”, elogia Mamberti.
“Eu escolhi essa peça porque me emocionei muito com a montagem do Paulo [Autran], que foi meu amigo e parceiro de trabalho. Queria fazer uma homenagem a ele e também voltar ao teatro com algo que tivesse conteúdo, porque a minha carreira toda foi construída em cima de uma militância política e social”, ressalta o ator veterano, que é filiado ao PT (Partido dos Trabalhadores) e, por 12 anos, até 2013, ocupou vários cargos no Ministério da Cultura, como secretário da Identidade e Diversidade Cultural e presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes), entre outros.
“Esse texto foi sempre interpretado por grandes atores. Nos EUA, quem fez foi o Eli Wallach, um dos maiores daquele país. Além disso, acredito no teatro como uma arte social, profunda e transformadora”, acrescenta. Mamberti também escolheu seu companheiro de cena, Gelli. "Ele é um homem do teatro e, embora seja jovem, já tem uma carreira com muitas experiências. É um dos melhores da geração dele, e tivemos uma química, uma alquimia na construção do contexto dramático", conta Mamberti.
Texto continua atual
Com diálogos fortes, corajosos e boas doses de humor, “Visitando o Sr. Green” aborda a história de dois homens bem diferentes, um jovem executivo homossexual e um velho judeu ortodoxo, que veem seus caminhos se cruzarem após um acidente de trânsito e são obrigados a conviver por seis meses, uma vez por semana. O texto foi escrito nos anos 1990 e se passa numa Nova York de 1980, mas os problemas decorrentes da relação entre os personagens nunca foram tão atuais.
“A peça acaba sendo muito pertinente. Não se trata de uma questão de tolerância, essa palavra é insuportável; mas de aceitação do outro. Quando você apenas tolera, está dizendo: ‘Ok, não tem outro jeito’. E você não precisa concordar com aquela escolha ou condição para a sua vida, mas para a do próximo. As pessoas têm dificuldade de refletir sobre as possibilidades das outras. Pensam: ‘Ou é como eu sou, ou não pode ser”, analisa Scapin, que tem judeus, árabes, italianos, portugueses e negros em suas raízes familiares.
“Com a liberdade de expressão, quem era contra determinado pensamento ficou ainda mais radical, porque agora pode se expressar de forma muito mais contundente. A gente não vive um período de guerra [mundial], mas estamos num estado constante de alerta. Tudo está mais conectado e violento”, reflete o ator, que se diz ateu, mas admira o papa Francisco e o considera um avanço dentro do catolicismo.
Sergio Mamberti
Eu e o Cassio tivemos uma relação muito bonita, afetiva e artística durante o processo do 'Castelo'. E agora ele se mostrou um diretor extremamente maduro, sutil, de uma delicadeza enorme e capacidade para aprofundar os personagens. Isso comprova que ele já estava pronto
“O texto ganhou uma atualidade muito grande. Achávamos que essas questões já estavam superadas, mas tiveram um refluxo e agora ganharam um significado redobrado. O preconceito e o fundamentalismo continuam imperando e impedindo que a sociedade avance, apesar de todas as conquistas já feitas e dos direitos garantidos”, completa Mamberti.
Fusão musical
O espetáculo é literalmente uma fusão das músicas “Hava Nagila” –canção folclórica hebraica cujo título significa “Alegremo-nos” – e “Freedom! '90”, de George Michael, que tocam juntas como um "mashup" no começo e no fim da encenação. “O texto não aborda nada do ponto de vista panfletário ou militante, mas através de um encontro profundo entre duas pessoas de gerações diferentes, que enfrentam problemas aparentemente divergentes, mas que depois se mostram semelhantes”, explica Mamberti, que foi criado no catolicismo, mas hoje se considera ecumênico.
“Esse encontro mostra que os valores humanísticos se contrapõem a um conservadorismo que não tem sentido, irracional, baseado no preconceito. As religiões mudam, mas Deus é um só. E acho as crenças de matriz africana mais democráticas, mais próximas dos seres humanos. Acima de tudo, respeito muito os credos e a liberdade religiosa. E defendo o Estado laico”, destaca Mamberti.
Em cena, o ator usa um quipá (chapéu judaico), um talit (xale de seda) e carrega um livro de orações que pertenceram a seu sogro, o judeu David Mehr, cuja família veio da Áustria pouco antes da Segunda Guerra. Mamberti também come de verdade, por cinco vezes, ao longo de uma hora e meia de peça. “Tem creme de abóbora, ervilha, purê de batata, cenoura picada. A gente vai alternando. Não é simples mastigar e intercalar as falas, exige uma atenção toda especial, uma técnica para não engasgar”, revela Mamberti.
Assim como seu personagem, ele é viúvo –foi casado por 15 anos com a atriz Vivien Mahr, que morreu em 1980 e com quem teve três filhos homens. "Este ano, eu estaria completando 50 anos de casado, ela foi muito especial, teve um significado muito importante para mim", revela o ator. Além de Autran, a peça também é dedicada a Vivien, à crítica teatral Barbara Heliodora e à atriz de teatro norte-americana Judith Malina – as duas últimas morreram em abril.
Cassio Scapin
As pessoas têm dificuldade de refletir sobre as possibilidades das outras. Pensam: 'Ou é como eu sou, ou não pode ser'
Apesar da idade, Mamberti se diz uma pessoa cheia de energia e planos, que precisa se conter no palco, andar mais devagar, para tornar seu personagem mais verossímil. “Minha vida é árdua, viajo, assisto a tudo o que posso. O Paulo [Autran] também era assim, ia a teatros, exposições, manifestações. Quero continuar em cena, tenho um projeto de fazer o 'Falstaff' do Shakespeare. A pessoa só se aposenta quando morre. A Fernanda [Montenegro] tem 85 e ainda está na TV. A família dela também é da Sardenha [Itália], como a minha, a gente se chama de primo, temos a mesma energia”, diverte-se Mamberti.
E, para Scapin, não é só o parceiro do “Castelo” que ainda tem um longo caminho pela frente, mas toda a humanidade. “Temos muito a percorrer para chegar a um nível de aceitação razoável, no qual se possa conviver com felicidade, e o conforto seja compartilhado por todos. Atualmente, em um mundo onde as taxas da economia não param de subir e não há mais água, as pessoas se preocupam com quem você dorme, o que você faz na sua cama, o sanduíche que você come”, critica Scapin.
Serviço:
"Visitando o Sr. Green"
Quando: Temporada até 19 de julho. Sextas, às 21h30, sábados, às 21h, e domingos, às 19h
Onde: Teatro Jaraguá (Rua Martins Fontes, 71 - Centro, São Paulo)
Quanto: De R$ 25 (meia) a R$ 50 (inteira). Aposentados, estudantes, professores da rede pública, classe artística e clientes Porto Seguro pagam meia
Vendas: Pelo site Ingresso Rápido, nos pontos de venda oficiais da Ingresso Rápido ou na bilheteria do teatro (de terça a quinta, das 16h às 19h; sexta, das 16h às 21h30; sábados, das 16h às 21h; e domingos, das 15h às 19h)
Duração: 90 minutos
Classificação: 14 anos
Mais informações: (11) 3255-4380
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