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Brasileiros dizem que desenhar heróis traz fama, mas é trabalho insano

Roberto Sadovski

Do UOL, em São Paulo

08/04/2015 19h01

Vivemos hoje a febre dos super-heróis no cinema. A estreia de “Vingadores: Era de Ultron” no próximo dia 23, que promete estraçalhar recordes nas bilheterias com a mesma facilidade que Hulk arrebenta seus inimigos, deve coroar essa fase de deuses, monstros, supersoldados e cavaleiros de armadura modernos.

Os filmes do gênero –principalmente os da Marvel– transformaram atores e diretores nos novos ídolos de uma geração de neocinéfilos que, por tabela, acabam também indo atrás de seus heróis nos gibis. E não demorou para que a fama espirrasse em quem trabalha com quadrinhos.

“É. Hoje eu sou famoso”, brinca Mike Deodato, como é conhecido o artista paraibano Deodato Borges Filho, que há mais de duas décadas empresta seu talento para dar vida aos heróis da editora Marvel no papel. “O engraçado é que, com o sucesso dos filmes, muita gente passou a me reconhecer, mas da maneira errada”, diz ele.

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  • Divulgação

    O trabalho não mudou em nada, e agora eu sinto as vendas subirem, porque aumenta o percentual de royalties. Mas o volume de trabalho está enorme, o prazo está mais apertado. Antes eu tinha quatro meses para preparar uma revista antes de ela ir às bancas. Agora eu desenho em um mês, no seguinte está publicado

    Mike Deodato, desenhista de quadrinhos
Deodato, que atualmente desenha a série “Guardians of Nowhere”, uma evolução dos Guardiões da Galáxia, conta que não é raro alguém lhe perguntar como foi trabalhar nos filmes, nas séries de TV ou nos desenhos animados da Marvel. “Mas é legal ter mais gente reconhecendo o trabalho, eu sinto que existe uma nova base de fãs sendo criada.”

De Belém (PA), o desenhista Joe Bennett –cujo nome de batismo é Benedito José Nascimento--, diferentemente de Deodato, é freelancer e não tem laços com nenhuma editora em particular, mas corrobora as palavras do colega. “Ganhamos um ar de gente importante perante o público geral”, reflete. “Antes, esse reconhecimento só existia entre os iniciados. Hoje em dia, as pessoas querem saber mais sobre meu trabalho quando eu digo que desenho o Thor ou o Homem de Ferro.”

Apesar de serem tratados como grandes astros nas convenções de fãs de quadrinhos que se multiplicam pelo Brasil, os dois desenhistas mantêm os pés no chão, talvez por fazer parte de uma indústria há mais de 20 anos. “Eu gosto de ver meu trabalho reconhecido, mas é estranho ver as pessoas me chamando de ídolo, de mito.... Mito é a palavra da moda, né?”, diverte-se Deodato.

Cobrança muito maior

Uma coisa que mudou, porém, desde a explosão dos filmes de super-heróis, foi a cobrança da editora. “Os prazos apertaram, os editores nos colocam mais e mais na guilhotina do ‘deadline’”, comenta Bennett. Deodato vai além: “O trabalho não mudou em nada, e agora eu sinto as vendas subirem, porque aumenta o percentual de royalties. Mas o volume de trabalho está enorme, o prazo está mais apertado. Antes eu tinha quatro meses para preparar uma revista antes de ela ir às bancas. Agora eu desenho em um mês, no seguinte está publicado”.

Segundo o desenhista, como consequência, isso aumenta a rotatividade das equipes criativas em cada título, o que o paraibano acredita prejudicar a identidade das revistas. “A Marvel ainda não é como a DC, que muda sempre as pessoas que fazem cada série”, explica. “Mas está começando a ficar chato. Essa ideia de deixar os títulos quinzenais, por exemplo. O modelo que ainda funciona para uma história em quadrinhos é mensal.”

Apesar de as séries não seguirem a cronologia dos filmes no cinema, a exigência dos leitores em sentir uma proximidade maior com os heróis de carne e osso mudou o estilo dos desenhos. “Quando eu desenhei o título do Homem de Ferro, tive de fazer as armaduras visualmente muito próximas aos filmes”, continua Bennett, que atualmente responde pela arte da adaptação da série de TV “Arrow”, baseada no personagem Arqueiro Verde, da DC Comics, concorrente da Marvel. “No cinema, [as armaduras do Homem de Ferro] são lindas, mas desenhar aquilo tudo com o nível de realismo exigido pelos leitores é insano! Não é um computador fazendo uma cena em CGI, é minha munheca e meu cérebro.”

De acordo com Deodato, o realismo de sua arte lhe causou um problema invertido. Ao colocar o rosto de atores famosos em alguns personagens –seu Norman Osbourne, o Duende Verde, era retratado com os traços de Tommy Lee Jones, por exemplo–, ele ensaiou algo que se tornou complicado para a Marvel. “Antes de a Disney comprar a editora, antes do sucesso dos filmes, ninguém via muito problema”, entrega. “Mas acho que o pessoal agora tem tanto medo de processo que eu preciso pedir autorização para cada rosto que eu faço.”

Isso causou uma situação curiosa quando Deodato foi chamado para fazer uma das capas variantes da edição de estreia de “Agentes da S.H.I.E.L.D.”, título baseado na série de TV: “Meu desenho trazia o agente Phil Colson, que na série é interpretado pelo Clark Gregg... Mas eu não podia fazer o rosto do cara, mesmo sendo um gibi baseado na série dele!”

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  • Reprodução/Facebook

    No cinema, [as armaduras do Homem de Ferro] são lindas, mas desenhar aquilo tudo com o nível de realismo exigido pelos leitores é insano! Não é um computador fazendo uma cena em CGI, é minha munheca e meu cérebro

    Joe Bennett, desenhista de quadrinhos

Joe Bennett devolve: “Não sou muito bom em desenhar atores, nunca fui. Quando fiz o gibi da (série de TV) “Buffy”, uns 16 anos atrás, eu nem sabia o rosto do elenco, já que não via o programa. A internet engatinhava, e eu me virava com algumas fotos em revistas.”

Exatamente por esse motivo, sua adaptação do primeiro “Os Vingadores”, o filme de 2012 que se tornou a terceira maior bilheteria de todos os tempos, é um híbrido entre realismo e seu próprio estilo. “Foi difícil, eu tive de fazer uma pesquisa monstruosa e caprichei o dobro”, explica. “Foi minha opção, na verdade. Quando eu era guri, odiava as adaptações de filmes em quadrinhos. Visualmente as coisas não batiam. Não queria entregar nada meia-boca.” O resultado ainda não agradou o artista, que demorou mais que o habitual com o capricho extra e só fez 70% da arte.

Ex-leitores

Apesar de trabalharem com isso, Deodato e Bennett confessam que não são leitores de histórias em quadrinhos há tempos. “Meus mestres são os clássicos. Alex Raymond, Hal Foster, John Buscema, Joe Kubert, Garcia Lopez, eu lia os gibis que eles faziam”, conta Bennett. “Hoje muitos artistas só querem saber de imitar o desenhista da moda. Eles já querem saber para qual editora vão trabalhar e qual herói vão desenhar, não se preocupam em mergulhar fundo e ir atrás dos originais.”

Deodato ainda acompanha as edições encadernadas escritas por colegas da Marvel, principalmente aqueles com quem ele vai trabalhar em projetos autorais. “Preciso pegar outras influências e não ficar só lendo super-heróis”, diz. “Estou prestando atenção nos livros de dois roteiristas da Marvel que vão trabalhar comigo em projetos alternativos, que serão 100% nossos.” Ele lamenta não poder revelar o nome dos parceiros nem as editoras, mas entrega que enxerga, sim, a possibilidade de uma série sua ser adaptada ou para a TV ou para o cinema.

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  • Reprodução

    Eu adoro cinema, de verdade. Minha narrativa é toda inspirada em filmes

    Joe Bennett, desenhista de quadrinhos

Embora hoje artistas de quadrinhos tenham passado a atuar em outras mídias –como o roteirista Mark Millar, que se tornou um nome de peso em Hollywood com as adaptações de suas criações “O Procurado”, “Kick-Ass” e “Kingsman”–, os brasileiros hesitam em mudar de lado.

“Eu adoro cinema, de verdade”, entrega Bennett. “Minha narrativa é toda inspirada em filmes... Mas acho que só daria esse salto se morasse em outro local, não aqui, não nessa existência.”

Já Deodato teve o prazer de ver alguns de seus designs ganharem versão de carne e osso, como o Patriota de Ferro (em “Homem de Ferro 3”) e a agente Victoria Hand (de “Agentes da S.H.I.E.L.D.”), mas também descarta uma mudança de mídia. “Se eu fizer um curta, se participar de um longa, será só pela experiência”, conforma-se. “Mas o que eu gosto mesmo é desenhar quadrinhos. Nasci para ser pobre...”