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Escritor de muitas memórias, Carlos Heitor Cony tem a sua obra relançada

O escritor Carlos Heitor Cony, em foto feita em sua casa, no Rio, em 2013 - Rafael Andrade/Folhapress
O escritor Carlos Heitor Cony, em foto feita em sua casa, no Rio, em 2013 Imagem: Rafael Andrade/Folhapress

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

14/03/2015 06h00

- Boa tarde, Cony. Como vai?

- Vou mal.

É raro começarmos um papo por telefone e o entrevistado dizer, de cara, que está indo mal. Mas Carlos Heitor Cony, 88 anos e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), ainda não se acostumou com a vida após o tombo que levou na Alemanha em 2013, durante a Feira do Livro de Frankfurt. Na queda, o escritor bateu a cabeça. O coágulo formado no cérebro logo se dissipou. Contudo, as sequelas em suas pernas, agora um tanto bambas, permaneceram. Cadeirante, queixa-se das dificuldades e limitações para se locomover, mas garante que os problemas estão somente nos membros inferiores. “A lucidez está legal”, diz. E pela conversa que se desenvolveu a partir daí, é possível afirmar que a cabeça de Cony está realmente boa, com destaque para a sua memória, é claro.

O motivo da conversa eram os livros do escritor que estão sendo relançados pela Nova Fronteira. Na primeira tacada, nove títulos: “Chaplin e Outros Ensaios”, “Quase Memória”, “O Harém das Bananeiras”, “A Volta Por Cima”, “Luciana Saudade”, “Rosa”, “Vegetal e Sangue”, “Quinze Anos”, “Vera Verão” e “O Ato e o Fato”. Para os próximos anos, a editora promete reeditar, em versões impressas ou digitais, boa parte da vasta obra de Cony, que inclui romances, ensaios, crônicas e contos, dentre outros gêneros, destinados a públicos que vão do infantil ao adulto.

Cony

  • Antônio Gaudério/Folhapress

    Foi bastante difícil escrever esse livro, imagina um jogador de futebol que fica todos esses anos sem dar um chute na bola, quando ele volta para o campo, não sabe o que fazer

    Carlos Heitor Cony, sobre o livro "Quase Memória", escrito após um hiato de 21 anos

Cony vê com bons olhos esses relançamentos, ainda mais por centralizarem parte de sua produção. “Minha obra estava muito esparramada, em diversas editoras”, queixa-se. Muito disso se deve ao seu início prolífico –entre 1958, quando estreou com “O Ventre”, e 1968, escreveu ao menos um livro por ano– e por aceitar convites de editores diversos, ampliando seus gêneros de atuação.

Essa pluralidade continua presente em sua vida, tanto é que o escritor também está lançando “O Crime Mais que Perfeito”, este pela Galera Júnior, braço da Record. Escrito em parceria com Anna Lee, jornalista, escritora e doutora em estudos da literatura, trata-se do quinto volume da série “Duda, Jacaré e Cia”, pensada para o público juvenil.

Muita memória

Apesar da produção constante durante a carreira, foi após um hiato de 21 anos sem escrever romances que Cony arquitetou o seu principal trabalho. “Não aguentava mais a máquina de escrever. Quando minha filha me deu um computador e vi que era fácil usá-lo, aí voltei à ficção”, relembra. Então, escreveu “Quase Memória”, seu mais famoso livro. Nele, o autor transforma em literatura as lembranças da relação com seu pai, Ernesto Cony Filho, retratado como um personagem movido pelos sonhos. “Foi bastante difícil escrever esse livro, imagina um jogador de futebol que fica todos esses anos sem dar um chute na bola, quando ele volta para o campo, não sabe o que fazer”, compara Cony.

Mas seu chute foi certeiro. “Quase Memória” lhe valeu prêmios Jabuti das categorias romance e livro do ano de 1996 e fortificou seu nome para que conquistasse uma cadeira na ABL, em 2000. Além disso, revigorou o escritor no gênero: nos anos seguintes, lançou outros romances celebrados, como “O Piano e a Orquestra” e “A Casa do Poeta Trágico”.

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  • Daniel Marenco/Folhapress

    É uma bofetada na sociedade em geral, na religião, política, esporte... Ele é considerado o pai da prosa inglesa

    Carlos Heitor Cony, sobre "As Viagens de Gulliver" livro que considera o mais importante de todos os tempos

Em “Quase Memória”, Cony se esbalda em um dos traços mais caros à sua obra: a relação com o seu passado. Difícil analisar os trabalhos ficcionais do escritor sem levar em conta como sua vida está presente em seus livros. Apenas para ficarmos em mais um exemplo, “O Harém das Bananeiras” reúne crônicas que revelam a juventude de Cony. Ele mesmo assume essa característica. “Qualquer romance é uma autobiografia disfarçada, já disseram. Quem já fez dez romances contou a própria história dez vezes de maneiras diferentes. Isso faz parte.”

Tanto faz parte, que ele lembra grandes escritores que seguiram o mesmo caminho. Defende a tese de que Machado de Assis, em “Dom Casmurro”, retrata a dúvida que tinha de ser ou não pai de um dos filhos de José de Alencar. “Quem lê o livro sabendo certos detalhes da vida do Machado percebe. Mas ele era genial, então disfarçou muito.” Também lembra que Guimarães Rosa “não achava graça em quem inventava, então transpunha a realidade inovando na linguagem, assim passou incólume por essa questão, mas partes da vida dele estão nas entrelinhas dos livros, sobretudo do ‘Grande Sertão: Veredas’”. Ainda cita autores como Raul Pompeia, Jorge Amado e Ariano Suassuna, que, de maneira mais velada ou explícita, com maior ou menor intensidade, seguiram caminho semelhante. “Eu digo que minha obra é semiautobiográfica, mas todos os autores honestos diriam o mesmo”, conclui.

Poupando FHC

Voltando aos relançamentos, uma das obras que Cony se recusou a vender à Nova Fronteira foi “O Presidente que Sabia Javanês” – uma alusão a “O Homem que Sabia Javanês”, de Lima Barreto –, lançado em 2000 pela editora Boitempo. Não queria que republicassem as duras críticas que fez ao governo de Fernando Henrique Cardoso, na época da polêmica aprovação da lei que possibilitou a sua reeleição à presidência. “Achei o fim da picada”, lembra o autor, que diz não ter se arrependido do que escreveu, mas que muitos dos textos foram escritos “no calor da hora, com muita violência, atualmente não fiquem tão bem”.

Com o passar dos anos, Cony se tornou amigo da família de FHC, além de, hoje, se dar muito bem com o ex-presidente, seu colega de ABL e uma pessoa que considera “muito inteligente”. Aliás, o escritor votou em Fernando Henrique quando o sociólogo foi eleito para a Academia. “Disse para ele: ‘votei em você e assumo os oito anos que passei te criticando’”. Contudo, caso a eleição fosse para algum cargo executivo, a posição de Cony seria diferente: “Também disse que não votaria nele nem para síndico do meu prédio”. O escritor compareceu inclusive à cerimônia de posse de seu novo colega, algo que raramente faz. “Tem que botar fardão, é quente...”.

Cony infanto-juvenil

Perguntado sobre o romance “O Crime Mais que Perfeito”, Cony atropela a novidade e ativa as memórias de quando as traduções e adaptações de clássicos da literatura para o público infanto-juvenil eram o seu principal ganha-pão. Debruçou-se sobre praticamente toda a obra de Julio Verne e também em clássicos como “Crime e Castigo” e “Moby Dick”, o que aponta como o melhor trabalho que já fez. “Tinha uma outra adaptação da Rachel de Queiroz, que li antes de fazer a minha. Sinceramente, fiz uma melhor”, gaba-se, sobre “Moby Dick”.

Nessas atividades, passou mais de duas décadas –mesmo com outras em paralelo, eventualmente–, fazendo uma adaptação a cada 40 dias, aproximadamente. E garante que, assim, conseguiu se manter, educar seus filhos, viajar... Dessa época, diz ter ficado constrangido ao receber a encomenda para uma versão de “O Ateneu”, de Raul Pompeia, por precisar mexer em um clássico da literatura nacional. Quando precisou fazer o mesmo com outro monumento brasileiro, “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, praticamente não modificou o texto. “Vi que era tão bom, que mudei apenas o tamanho e um ou outro detalhe datado. Era um livro fundamental, inaugural da minha vida.”

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  • Antônio Gaudério/Folhapress

    Não tenho vigor suficiente para escrevê-lo. Esse tombo que levei me prejudicou muito. Tenho o romance inteiro na cabeça, mas precisaria colocá-lo no papel. Posso até fazer outros 20 livros, mas esse não dá mais

    Carlos Heitor Cony, sobre "Messa para o Papa Marcello", livro que ele anuncia desde a década de 1950

Ao falar do que é fundamental em sua vida, aliás, Cony é certeiro: seu poeta preferido é Ovídio, e o livro mais importante da história da humanidade é, segundo ele, “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. “É uma bofetada na sociedade em geral, na religião, política, esporte... Ele é considerado o pai da prosa inglesa”, argumenta o autor, que tem a leitura como um dos seus principais pilares. “A principal coisa da minha vida, depois de existir, é a leitura”. De tudo o que leu, ainda faz questão de destacar Machado de Assis e Jean-Paul Sartre, que, durante uma época, considerou um gênio por conta de obras ficcionais como “A Náusea”, independente da parte filosófica.

Falta de vigor

Atualmente, escrevendo para a “Folha de S. Paulo” e participando de um programa da Rádio CBN, Cony não sabe dizer se lançará mais novidades. Só garante uma coisa: o romance “Messa para o Papa Marcello”, que anuncia desde a década de 1950 (o fez primeiro com o nome de “Paixão Segundo Mateus”), jamais existirá. A narrativa se basearia em uma gravação do compositor italiano renascentista Giovanni Pierluigi de Palestrina, autor de “Missa do Papa Marcelo”, em homenagem ao papa Marcelo 2º. “Foi ele quem introduziu o contraponto, deu a terceira dimensão à música”, salienta Cony.

Após quase seis décadas carregando a história consigo, afirma que não há mais como transformá-la em livro. “Não tenho vigor suficiente para escrevê-lo. Esse tombo que levei me prejudicou muito. Tenho o romance inteiro na cabeça, mas precisaria colocá-lo no papel. Posso até fazer outros 20 livros, mas esse não dá mais”, diz o escritor ao jogar a toalha.

Uma novidade que é certa envolvendo o autor é a adaptação para o cinema de “Quase Memória”, projeto que está sendo tocado pelo cineasta Ruy Guerra e está previsto para chegar às telonas no primeiro semestre de 2016. Será o quarto texto de Cony a ser transformado em filme, mas o escritor diz não interferir no processo. “O que fiz foi escrever o livro”.