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De Che Guevara a Malala, conheça as biografias escritas para crianças

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

26/02/2015 06h00

Aos 15 anos, Malala Yousafzai foi baleada por um integrante do grupo extremista Talibã. A menina levou três tiros porque insistia em reivindicar o direito de as garotas paquistanesas estudarem. Ela sobreviveu à tentativa de assassinato e continuou com a sua luta, tornando-se, em 2014, a mais jovem ganhadora do Prêmio Nobel da Paz.

Já seu conterrâneo Iqbal Masih não teve a mesma sorte. Aos quatro anos, foi escravizado por conta de uma dívida, de apenas US$ 12, contraída por seus pais. Acorrentado, passava o dia trabalhando em um tear. Quando foi libertado, seis anos depois, pela Frente de Libertação do Trabalho Forçado do Paquistão, passou a protestar contra a exploração do trabalho infantil no país. Incomodou tanto alguns poderosos, que foi assassinado aos 12 anos, em 1995. Posteriormente, foi condecorado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas como um “defensor da luta no Paquistão contra as formas contemporâneas de escravidão”.

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  • O mundo recebe as crianças com aparatos tecnológicos impressionantes, aos quais elas se adaptam com rapidez igualmente impressionante. Mas há informações sobre esse mesmo mundo que elas só poderão ir conhecendo aos poucos e conforme sua área de interesse

    Maria de Nazareth Agra Hassen, coordenadora da coleção "Filosofinhos"

Apesar de as trajetórias desses dois jovens terem sido marcadas por violência e injustiça, elas foram transformadas em biografias destinadas ao público infantil no livro “Malala, uma Menina Muito Corajosa/ Iqbal, um Menino Muito Corajoso”, da autora e ilustradora americana Jeanette Winter, que assina mais de outras 60 obras do gênero. “Duas crianças paquistanesas protestaram contra a injustiça no mundo delas. Sua bravura diante de um grande perigo é motivo de inspiração para todos que conhecem sua história”, relata a escritora ao iniciar cada lado do livro, no formato “2 em 1”.

Biografias como um braço do ensino

Um filão que editoras, principalmente estrangeiras, já vêm explorando há algum tempo, as biografias infantis levam às crianças, com uma linguagem acessível a elas, um pouco da história de grandes nomes da humanidade. Geralmente são recortes pontuais nas fases essenciais que justificam a relevância dos personagens. Em “Malala, uma Menina Muito Corajosa/ Iqbal, um Menino Muito Corajoso”, Jeanette se concentra na importância dos protagonistas e de suas lutas, transformando as vidas de Malala e Iqbal em espécies de contos. Essa síntese, junto do rigor, é essencial ao se construir uma biografia destinada ao público em questão, desde que não haja banalização do personagem e seus principais conceitos não sejam desvirtuados, garante Maria de Nazareth Agra Hassen,  filósofa e doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nazareth coordena a “Colação Filosofinhos”, da Tomo Editorial, que busca apresentar importantes filósofos, como Platão, Descartes e Rousseau, para o público infantil. “O mundo recebe as crianças com aparatos tecnológicos impressionantes, aos quais elas se adaptam com rapidez igualmente impressionante. Mas há informações sobre esse mesmo mundo que elas só poderão ir conhecendo aos poucos e conforme sua área de interesse”, diz Nazareth ao justificar a importância de biografias para crianças (veja outros exemplos no álbum acima).

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  • Não acho uma boa ideia divulgar para as crianças a vida e até mesmo as condições que possibilitaram a emergência de pessoas que fizeram mal à humanidade ou ao planeta. Não recomendaria biografar, para o público infantil, pessoas cuja vida não deveria servir de modelo

    Maria de Nazareth Agra Hassen, coordenadora da coleção "Filosofinhos"

A pesquisadora aposta, principalmente, que os pequenos prestam mais atenção no que lhes é ensinado ao conhecer a história dos personagens envolvidos. “Uma fórmula matemática é pura abstração, mas se conhecermos a história do seu criador e do que a fórmula representou num contexto histórico da disciplina e do mundo, ela fará muito mais sentido e poderá ser mesmo prazerosa”, exemplifica. “Uma biografia é um manancial de informações, curiosidades e fatos. Por meio dela, se contextualizam os conteúdos, e eles fazem mais sentido do que quando são apresentados como meros conhecimentos dos quais ‘devemos’ nos apropriar”, continua.

A pesquisadora também explica que, para esse público, é de suma relevância garantir que a história seja atraente. Sobre a coleção que coordena, diz que a opção foi construir personagens crianças, que vivem “alguma experiência que traduza conceitos e pensamentos que, na vida real, só foram vividos na maturidade. O maior desafio é traduzir em uma problemática infantil aquilo que é um conceito filosófico”. Ou seja, explicar para a garotada coisas que muitas vezes fazem mais sentido somente no mundo dos adultos –ou sequer fazem sentido, como atirar em dois jovens por conta de suas ideias e atitudes.

Personagens polêmicos

Entretanto, se biografias infantis de gente como Malala, Iqbal e diversos filósofos parecem ser amplamente aceitáveis, o mesmo não se pode dizer de outros nomes. “Não acho uma boa ideia divulgar para as crianças a vida e até mesmo as condições que possibilitaram a emergência de pessoas que fizeram mal à humanidade ou ao planeta. Não recomendaria biografar, para o público infantil, pessoas cuja vida não deveria servir de modelo”, defende Nazareth. Entrando no campo ideológico, é provável que muitos torçam o nariz ao ver, por exemplo, uma biografia de Karl Marx destinada à criançada, na qual ele reflete sobre operários que trabalham horas a fio, mas não conseguem deixar a pobreza.

Uma polêmica concreta vem da Argentina. Há cerca de cinco anos, o livro “Che – La Estrella de un Revolucionario”, que narra a história de Che Guevara para um público de até 12 anos, causou incômodo por conta da violência intrínseca à trajetória do protagonista, tido por alguns como um mito revolucionário e por outros como um sanguinário assassino. Nesses casos, aparentemente, a relevância dos personagens para os pequenos dependerá muito mais do posicionamento político dos pais do que da história em si.