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"Autocracia" ataca cultura do carro e força motoristas a DR ao volante

Diego Assis

Do UOL, em São Paulo

12/02/2015 07h00

Se você é, como diz aquela publicidade, um "brasileiro que ama carro", talvez seja a hora de discutir a relação. Quem dá o roteiro da DR é Woodrow Phoenix, autor da provocativa HQ "Autocracia", lançada este mês no Brasil pela editora Veneta.

Ao contrário do que se poderia esperar de iniciativas nessa linha, "Autocracia" não é um panfleto pelo uso do tranporte público coletivo, muito menos um libelo apocalíptico denunciando os efeitos nocivos dos carros no meio ambiente. Antes, é uma crítica aos aspectos autoritário, violento e - sim. senhor - letal que cercam a cultura do automóvel.

"Um carro é uma peça de metal densa e firme, centenas de vezes mais pesada que o corpo humano. Ele pode facilmente matar qualquer coisa em seu caminho. Ainda que tenham esse imenso potencial destrutivo, carros são dirigidos como se seu mau uso não tivesse nenhuma consequência. Se você quiser matar alguém e se safar (a parte importante), faça isso: Não atire. Não esfaqueie ou envenene. Não esmague seu cérebro com um objeto pesado. Não o jogue da janela ou o estrangule com uma corda. Não incendeie sua casa enquanto dorme. Avance sobre ele. Não vai ser nada demais. Acidentes de carro acontecem o tempo todo."

O discurso talvez soe um tanto exagerado no começo, implicância de gente que quer botar ciclovia em todo lugar e insiste em pintar o motorista como único vilão do caos no trânsito dos grandes centros urbanos. Mas a lábia de Woodrow Phoenix é poderosa e, ao longo de 176 páginas de quadrinhos sem mostrar sequer um personagem humano, o leitor é colocado ao volante em uma espécie de montanha russa do horror que inclui estatísticas de acidentes, relatos de tragédias pessoais e reflexões sobre a nossa própria fragilidade - física e simbólica - diante de uma sociedade que coloca milhares de carros nas ruas todo dia e limita cada vez mais o espaço das pessoas.

"Motoristas sentem-se frustrados quando pedestres não demonstram gratidão e deferência suficientes por lhes permitirem andar nas ruas. Pedestres não deveriam perder tempo. Pedestres deveriam atravessar as ruas o mais rápido possível. Apressem-se. Corram. Bem, é por sua própria segurança. Pedestres não deveriam abusar da sorte, pedestres não deveriam sair do caminho", escreve o autor em tom de ironia que, em muitos casos, reflete exatamente o que muitos motoristas pensam e praticam.

Por mais pró-carro que você seja, é difícil não esbarrar os olhos no retrovisor e flagar a si mesmo, de vez em quando, em algumas das cenas mais absurdas descritas pelo autor. Aquela vez em que você acelerou para não dar passagem a um carro que esperava para acessar a pista. Ou então quando deu sinal de luz e buzinou, irritado, com uma "lata velha" que estava à sua frente na pista da esquerda. Ou ainda quando o sangue subiu à cabeça de verdade, parou o carro, abriu a porta e resolveu enfiar o dedo na cara de outro motorista por uma barbeiragem dele - ou sua, não importa.

Ao examinar de perto nossa obsessão por carros cada vez maiores, mais caros e velozes, por  chegarmos sempre em primeiro ou, como diz a famosa "Lei de Gerson", em levarmos sempre a vantagem no trânsito, Phoenix vai sugerindo o quão ridículos - e desumanizados - podemos acabar nos tornando sem sequer nos darmos conta.

"Motoristas começam a considerar seus carros uma casca. Como um exoesqueleto. Extensão corporal. Uma segunda pele. Eles podem ficar perturbados quando um estranho toca essa extensão de seus corpos. Mesmo quando não deixa marca. É um lance territorial. Invasão de território. Não sente no capô. Não se apoie nele. Não se choque contra o para-choque. Não estrague a pintura", diz. "Sentado e amarrado em seu cinto de segurança com um airbag escondido à sua frente, invisível e silenciosamente esperando pelo momento de entrar em combate, você parece um ovo que acabou de ser colocado em uma embalagem de papelão criada especialmente para você. Você parece o centro molinho de uma bala bem dura."

Já descrito como "genial" pelo diário londrino "The Times" e sugerido como leitura obrigatória para jovens prestes a tirar a primeira carteira de motorista pelo escritor Jon McGregor, "Autocracia" merece alguns minutos da sua atenção, seja você um típico nervosinho ou um monge ao volante. Como diz outro quadrinista famoso, o criador do Homem-Aranha Stan Lee, a reflexão de Phoenix nos ajuda a enxergar que com grandes poderes também há de vir responsabilidades.

"As pessoas precisam entender que o risco é inevitável no mundo moderno. É preciso aceitar que não se pode proteger completamente as pessoas. Controlar riscos é uma parte desagradável mas necessária da vida. Tudo bem. Verdade. Mas nem todos os riscos são aceitáveis. Ou inevitáveis. Ou necessários. Por que usar uma estrada deveria ser uma roleta russa com a sua vida? Como chegamos ao ponto de isso ser considerado um risco aceitável?"