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Pioneira, escritora que vivia do lixo é homenageada em seu centenário

A escritora brasileira Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do lançamento de seu livro "Quarto de Despejo", em uma livraria na rua Marconi, em São Paulo (SP), no ano de 1960 - Acervo UH/Folhapress
A escritora brasileira Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do lançamento de seu livro "Quarto de Despejo", em uma livraria na rua Marconi, em São Paulo (SP), no ano de 1960 Imagem: Acervo UH/Folhapress

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

19/11/2014 06h00

Se as favelas e as periferias conseguiram construir um movimento literário próprio, com escritores, editores e eventos que fomentam a arte escrita nos bairros mais carentes e isolados –a dita literatura marginal–, em muito isso se deve a Carolina Maria de Jesus, que completaria 100 anos em 2014.

Em celebração ao seu centenário, a autora está sendo homenageada pela Balada Literária, que reunirá escritores em torno de mesas de discussões entre os dias 19 e 23 de novembro, em diversos pontos de São Paulo (confira a programação aqui).

Mãe solteira de três filhos, catadora de papel e ferro velho, Carolina vivia na favela do Canindé, entre a zona norte e o centro de São Paulo, quando chamou a atenção do jornalista Audálio Dantas. Ele conheceu a moça durante a apuração de uma reportagem e achou interessante seus 35 cadernos repletos de anotações que formavam um diário. Contou a história de Carolina, então, em algumas matérias e conseguiu com que uma editora publicasse parte dos escritos.

“Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” saiu em 1960, vendeu mais de 80 mil exemplares e foi traduzido para 13 línguas. Esse sucesso, como não poderia ser diferente, mexeu bastante com a vida de Carolina.

“Ela é uma guerreira, é única na história da literatura brasileira. Tem uma linguagem autêntica, própria. Precisa ser celebrada agora e eternamente”, justifica Marcelino Freire, escritor, criador e curador do evento.

Para ele, a escritora ainda pode ensinar que “não podemos esperar que os acadêmicos ou as escolas venham dizer qual literatura devemos fazer. Carolina fez. Ao seu estilo, na sua verdade. A obra dela é fruto dessa verdade, desse impulso. Atente para o vocabulário, a força, a oralidade, a verdade que salta de suas páginas”.

Alessandro Buzo, um dos escritores mais famosos da cena marginal, complementa Marcelino. “Ela é pioneira quando se fala em pessoa da classe periférica, favelada, lançando livros. Se hoje existem vários, ela é a mãe. Acho que a grande maioria de nós, escritores marginais, tem ela como referência e inspiração”. Buzo também se diz influenciado por “Quarto de Despejo”, livro que leu quando estava em uma situação financeira bastante instável e que lhe serviu de inspiração. “Tive a certeza de que qualquer pessoa, em qualquer situação, poderia ser leitor e até autor”.

Literatura: a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo". (São Paulo (SP), 17.06.1960.  - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
17.jun.1960 - A escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo", entre seus livros
Imagem: Acervo UH/Folhapress
Trajetória

Carolina nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Frequentou a escola por apenas dois anos; precisou abandoná-la para seguir com a família para Lageado, também em Minas, onde trabalhou como lavradora. Em busca de uma melhor condição financeira, tentou a vida em Franca, no interior de São Paulo, e, em 1937, rumou para a capital paulista. Foi viver na favela do Canindé, onde escreveu seus diários, em 1948.

Seu primeiro livro, “Quarto de Despejo”, revela o cotidiano miserável de Carolina e levanta discussões sociais sobre os marginalizados. Os dias relatados na obra têm sempre o mesmo objetivo: aplacar a fome. Após o sucesso comercial do título, Carolina conseguiu dinheiro para comprar uma residência na zona norte de São Paulo, de onde escreveu “Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada”, publicado em 1961.

“Pedaços de Fome”, seu terceiro livro e único romance, sai em 1963 e chama pouca atenção. Carolina já vinha enfrentando diversos problemas decorrentes das mudanças que ocorreram em sua vida após o sucesso. A escritora não conseguiu se adaptar à nova realidade. Não se sentia à vontade em um bairro de classe média, desentendia-se com seus editores e lutava para se manter em alguma evidência.

“Penso que como todo artista, ela reagiu ao sucesso com regalo e deslumbramento. O assédio da mídia a transformou num 'case' extraordinário, pois do dia para a noite saiu do anonimato para o estrelato: seu primeiro livro causou frisson nas pessoas, tornou-se objeto de consumo da elite e dos intelectuais, e logo despertou curiosidade do exterior”, analisa Uelinton Farias Alves, professor e escritor, que trabalha para publicar uma biografia da autora em 2015.

Alves explica que o sucesso meteórico e a ascensão de classe fizeram com que conflitos se apossassem da personalidade de Carolina, “já tantas vezes abalada pelo processo de massacre vivido desde a infância, constantemente humilhada e vítima dos mais mesquinhos preconceitos”. O biógrafo lembra que a autora saiu da favela “quase apedrejada”, pois colegas que temiam ter suas vidas expostas nos diários da escritora a viam como uma ameaça.

Literatura: a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo". ( 05.06.1960.  - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
05.jun.1960 - A escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo", na janela de sua casa
Imagem: Acervo UH/Folhapress
Volta à pobreza

Sem conseguir se adaptar à nova realidade, sem poder retornar à favela, Carolina pensou em suicídio, mas, em 1969, optou por se mudar para um sítio em Parelheiros, onde tentaria fugir de tudo que a cercava. Por lá ficou praticamente esquecida até a sua morte, em 1977. Já em seus últimos dias, segundo Alves, chegou a lamentar sua vida e a declarar que nunca deveria ter saído da favela. “Ela morreu pobre e desiludida com o mundo da escrita. Ela fazia outra ideia desse mundo, que a salvaria de todos os problemas e misérias”, diz o biógrafo.

Após a sua morte, em 1986 saiu “Diário de Bitita”, publicado primeiro na França, com suas memórias da infância e adolescência. Após algum tempo no ostracismo, Carolina voltou a ser alvo de interesse a partir da década de 1990, principalmente por parte de estudiosos.

Além da homenagem prestada pela Balada Literária, Carolina também é relembrada por diversas outras iniciativas, como uma exposição sobre sua vida e obra no CEU Butantã, uma sessão solene na Câmara Municipal de São Paulo e o lançamento do livro “Onde Estaes, Felicidade?”, que reúne contos inéditos da autora organizados pela escritora Dinha Maria Nilda e a pesquisadora Raffaella Fernandez. Uelinton Farias Alves, seu biógrafo, ainda planeja “resgatar a ideia de publicação de sua obra completa, que inclui os romances inéditos, contos, provérbios, poesias...”