Pioneira, escritora que vivia do lixo é homenageada em seu centenário
Se as favelas e as periferias conseguiram construir um movimento literário próprio, com escritores, editores e eventos que fomentam a arte escrita nos bairros mais carentes e isolados –a dita literatura marginal–, em muito isso se deve a Carolina Maria de Jesus, que completaria 100 anos em 2014.
Em celebração ao seu centenário, a autora está sendo homenageada pela Balada Literária, que reunirá escritores em torno de mesas de discussões entre os dias 19 e 23 de novembro, em diversos pontos de São Paulo (confira a programação aqui).
Mãe solteira de três filhos, catadora de papel e ferro velho, Carolina vivia na favela do Canindé, entre a zona norte e o centro de São Paulo, quando chamou a atenção do jornalista Audálio Dantas. Ele conheceu a moça durante a apuração de uma reportagem e achou interessante seus 35 cadernos repletos de anotações que formavam um diário. Contou a história de Carolina, então, em algumas matérias e conseguiu com que uma editora publicasse parte dos escritos.
“Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” saiu em 1960, vendeu mais de 80 mil exemplares e foi traduzido para 13 línguas. Esse sucesso, como não poderia ser diferente, mexeu bastante com a vida de Carolina.
“Ela é uma guerreira, é única na história da literatura brasileira. Tem uma linguagem autêntica, própria. Precisa ser celebrada agora e eternamente”, justifica Marcelino Freire, escritor, criador e curador do evento.
Para ele, a escritora ainda pode ensinar que “não podemos esperar que os acadêmicos ou as escolas venham dizer qual literatura devemos fazer. Carolina fez. Ao seu estilo, na sua verdade. A obra dela é fruto dessa verdade, desse impulso. Atente para o vocabulário, a força, a oralidade, a verdade que salta de suas páginas”.
Alessandro Buzo, um dos escritores mais famosos da cena marginal, complementa Marcelino. “Ela é pioneira quando se fala em pessoa da classe periférica, favelada, lançando livros. Se hoje existem vários, ela é a mãe. Acho que a grande maioria de nós, escritores marginais, tem ela como referência e inspiração”. Buzo também se diz influenciado por “Quarto de Despejo”, livro que leu quando estava em uma situação financeira bastante instável e que lhe serviu de inspiração. “Tive a certeza de que qualquer pessoa, em qualquer situação, poderia ser leitor e até autor”.
Trajetória
Carolina nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Frequentou a escola por apenas dois anos; precisou abandoná-la para seguir com a família para Lageado, também em Minas, onde trabalhou como lavradora. Em busca de uma melhor condição financeira, tentou a vida em Franca, no interior de São Paulo, e, em 1937, rumou para a capital paulista. Foi viver na favela do Canindé, onde escreveu seus diários, em 1948.
Seu primeiro livro, “Quarto de Despejo”, revela o cotidiano miserável de Carolina e levanta discussões sociais sobre os marginalizados. Os dias relatados na obra têm sempre o mesmo objetivo: aplacar a fome. Após o sucesso comercial do título, Carolina conseguiu dinheiro para comprar uma residência na zona norte de São Paulo, de onde escreveu “Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada”, publicado em 1961.
“Pedaços de Fome”, seu terceiro livro e único romance, sai em 1963 e chama pouca atenção. Carolina já vinha enfrentando diversos problemas decorrentes das mudanças que ocorreram em sua vida após o sucesso. A escritora não conseguiu se adaptar à nova realidade. Não se sentia à vontade em um bairro de classe média, desentendia-se com seus editores e lutava para se manter em alguma evidência.
“Penso que como todo artista, ela reagiu ao sucesso com regalo e deslumbramento. O assédio da mídia a transformou num 'case' extraordinário, pois do dia para a noite saiu do anonimato para o estrelato: seu primeiro livro causou frisson nas pessoas, tornou-se objeto de consumo da elite e dos intelectuais, e logo despertou curiosidade do exterior”, analisa Uelinton Farias Alves, professor e escritor, que trabalha para publicar uma biografia da autora em 2015.
Alves explica que o sucesso meteórico e a ascensão de classe fizeram com que conflitos se apossassem da personalidade de Carolina, “já tantas vezes abalada pelo processo de massacre vivido desde a infância, constantemente humilhada e vítima dos mais mesquinhos preconceitos”. O biógrafo lembra que a autora saiu da favela “quase apedrejada”, pois colegas que temiam ter suas vidas expostas nos diários da escritora a viam como uma ameaça.
Volta à pobreza
Sem conseguir se adaptar à nova realidade, sem poder retornar à favela, Carolina pensou em suicídio, mas, em 1969, optou por se mudar para um sítio em Parelheiros, onde tentaria fugir de tudo que a cercava. Por lá ficou praticamente esquecida até a sua morte, em 1977. Já em seus últimos dias, segundo Alves, chegou a lamentar sua vida e a declarar que nunca deveria ter saído da favela. “Ela morreu pobre e desiludida com o mundo da escrita. Ela fazia outra ideia desse mundo, que a salvaria de todos os problemas e misérias”, diz o biógrafo.
Após a sua morte, em 1986 saiu “Diário de Bitita”, publicado primeiro na França, com suas memórias da infância e adolescência. Após algum tempo no ostracismo, Carolina voltou a ser alvo de interesse a partir da década de 1990, principalmente por parte de estudiosos.
Além da homenagem prestada pela Balada Literária, Carolina também é relembrada por diversas outras iniciativas, como uma exposição sobre sua vida e obra no CEU Butantã, uma sessão solene na Câmara Municipal de São Paulo e o lançamento do livro “Onde Estaes, Felicidade?”, que reúne contos inéditos da autora organizados pela escritora Dinha Maria Nilda e a pesquisadora Raffaella Fernandez. Uelinton Farias Alves, seu biógrafo, ainda planeja “resgatar a ideia de publicação de sua obra completa, que inclui os romances inéditos, contos, provérbios, poesias...”
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