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Chico Buarque lê trecho de seu novo livro "O Irmão Alemão"

"O Irmão Alemão", romance de Chico Buarque - Reprodução - Reprodução
Capa de "O Irmão Alemão", romance de Chico Buarque
Imagem: Reprodução

Do UOL, em São Paulo

03/11/2014 11h48

A editora Companhia das Letras divulgou na manhã desta segunda-feira (3) um vídeo em que Chico Buarque lê um trecho de seu novo romance, "O Irmâo Alemão", que chega às livrarias no dia 14 de novembro.  A pré-venda estará disponível nos sites das principais livrarias a partir de 4 de novembro.

O livro é o quinto romance do autor, que completou 70 anos em junho. Seu último livro, "Leite Derramado", foi lançado em 2009 e venceu o prêmio Jabuti de livro do ano. Chico Buarque estreou na literatura no Suplemento Literário do jornal "O Estado de S. Paulo" em 1966, com o conto "Ulisses", mais tarde incorporado ao songbook "A Banda".

"Fazenda Modelo" é o primeiro livro, de 1979. "Estorvo" (1991), "Benjamin" (1995) e "Budapeste" (2003) também estão na sua produção literária, esses dois últimos transformados em filmes, Monique Gardenberg e Walter Carvalho, respectivamente. 

No trecho de "O Irmão Alemão", lido por Chico no vídeo, é apresentado o personagem Ciccio, que relembra sua infância ao contar o desejo de seu pai de escrever "o melhor libro del mondo". O narrador fala sobre a obsessão do pai pai pelo livros, que o levou a ter a segunda maior biblioteca de São Paulo. Já adulto, Ciccio é acusado pela mãe de ter, quando garoto, sabotado o pai, mas ele conta como foi o incidente no trecho abaixo.

A editora faz suspense em relação ao tema do livro, mas a passagem tem muito da vida de Chico, cujo pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, era conhecido pelo amor pelos livros. E, assim como aponta o título do livro, Chico também teve um irmão alemão, que ele nunca conheceu.

Sérgio Buarque de Hollanda se relacionou com a alemã Anne Margerithe Ernst durante o período em que morou na Alemanha, em 1929 e 1930. De volta ao Brasil, Sérgio só teve notícias do filho, também batizado como Sérgio, quando a mãe da criança escreveu ao pai pedindo provas de que ele não tinha sangue judeu, para proteger a criança. Chico e os irmão tentaram encontrar Sérgio, mas nunca conseguiram.

A passagem de Sérgio Buarque pela Alemanha contribuiu para que o historiador concluísse "Raízes do Brasil", lançado em 1936, ano em que se casou com Maria Amélia. "Escrevi dois capítulos na Alemanha, quando lá morei", declarou Sérgio Buarque à imprensa brasileira em 1976. 


Leia o trecho:

Calma, Ciccio, disse minha mãe, quando já crescido lhe perguntei por que meu pai não escrevia um livro, uma vez que gostava tanto deles. Ele vai escrever o melhor libro del mondo, disse arregalando os olhos, ma prima tem que ler todos os outros. A biblioteca do meu pai contava então uns quinze mil livros. No fim superou os vinte mil, era a maior biblioteca particular de São Paulo, depois da de um bibliófilo rival que, dizia meu pai, não havia lido nem um terço do seu depósito. Calculando que ele tenha acumulado livros a partir dos dezoito anos, posso tirar que meu pai não leu menos que um por dia. Isso sem contar os jornais, as revistas e a farta correspondência habitual, com os últimos lançamentos que por cortesia as editoras lhe enviavam. A grande maioria destes ele descartava já ao olhar a capa, ou após uma rápida folheada. Livros que jogava no chão e mamãe recolhia de manhã para juntar no caixote de doações à igreja. E quando porventura ele se interessava por alguma novidade, sempre encontrava algum pormenor que o remetia a antigas leituras. Então chamava com seu vozeirão: Assunta! Assunta!, e lá ia minha mãe atrás de um Homero, um Virgílio, um Dante, que lhe trazia correndo antes que ele perdesse a pista. E a novidade ficava de lado, enquanto ele não relesse o livro antigo de cabo a rabo. Por isso não estranha que tantas vezes meu pai deixasse cair no peito um livro aberto e adormecesse com um cigarro entre os dedos ali mesmo na espreguiçadeira, onde sonharia com papiros, com os manuscritos iluminados, com a Biblioteca de Alexandria, para acordar angustiado com a quantidade de livros que jamais leria porque queimados, ou extraviados, ou escritos em línguas fora do seu alcance. Era tanta leitura para pôr em dia, que me parecia improvável ele vir a escrever o melhor libro del mondo. Por via das dúvidas, quando ao sair do quarto eu ouvia o toque-toque da máquina de escrever, tirava os sapatos e prendia a respiração para passar ao largo do seu escritório. E me encolhia todo se por azar naquele instante ele arrancasse num ímpeto o papel do rolo, achava que em parte era de mim a raiva com que ele esmagava, embolava a folha e a arremessava longe. Outras vezes a máquina cessava para meu pai pedir socorro: Assunta! Assunta!, era alguma citação que ele precisava transcrever urgentemente de um determinado livro. Com isso levava meses para redigir, rever, rasurar, arremessar bolotas, recomeçar, corrigir, passar a limpo e certamente contrafeito entregar para publicação o que seriam rascunhos do esqueleto do grande livro da sua vida. Eram artigos sobre estética, literatura, filosofia, história da civilização, que ocupariam uma coluna ou um rodapé de jornal. Quando papai morreu, apareceu um editor disposto a publicar uma coletânea dos artigos assinados por ele ao longo da vida. Fui contra, cheguei a mostrar à minha mãe a profusão de correções e emendas ilegíveis que meu pai sobrepusera ao texto ou anotara à margem dos próprios artigos, recortados dos jornais. Mas mamãe estava convencida de que o livro seria aclamado no meio acadêmico, quiçá editado até na Alemanha, graças aos escritos de juventude concebidos naquele país. E ainda insinuou que desde a infância eu procurava sabotar meu pai, haja vista aquele ensaio que por minha culpa desfalcaria suas obras completas. Meia verdade, porque era ao meu irmão que de tempos em tempos meu pai confiava um envelope a ser entregue na redação de A Gazeta, do outro uma quantia suficiente para uma semana de milk-shakes. Mas volta e meia meu irmão me repassava o dinheiro do bonde e o envelope, que eu levava a pé à redação. Não me movia o dinheiro poupado, que mal pagava duas mariolas, eu ficava era todo prosa com tamanha responsabilidade. Ainda ganhei a simpatia dos funcionários do jornal, e não me importava de passar por um suado estafeta do meu pai, em cujas mãos despejavam mais umas moedas. Mas certa vez, a caminho da redação, parei para jogar um futebol de rua, era comum naquele tempo. Carros circulavam só de quando em quando, e ao avistá-los ao longe os meninos gritavam: olha a morte! Logo recolhíamos as lancheiras, as pastas, os agasalhos que representavam as balizas e aguardávamos na calçada a passagem do carro para recomeçar a partida. Mas nesse dia não foi o trânsito, foi uma chuva súbita que nos obrigou a apanhar depressa nossas coisas e buscar abrigo sob a marquise de um empório. Chegou a cair granizo, que catávamos do chão, chupávamos, atirávamos uns nos outros, uma festa. Mas de repente calhou de eu me lembrar do envelope do meu pai, que eu deixara debaixo de um pulôver e agora estava ali no meio do aguaceiro. Corri para salvá-lo e por pouco não fui atropelado, pois naquele segundo passou um Chevrolet que agarrou o envelope com o pneu e só o soltou duas quadras adiante. Fui colher seus restos, e não havia remédio, o artigo do meu pai era uma estranha massa cinzenta, uma maçaroca de papel molhado.