Com saga de jovem no tráfico, carioca estreia com livro escrito no celular
Duas horas para ir, duas horas para voltar. O produtor cultural Jessé Andarilho passava quatro horas por dia, para ir e voltar, no trajeto da Estação Tancredo Neves, no bairro Santa Cruz, à Central do Brasil, no centro do Rio. Capturado pela literatura, desde quando leu “Zona de Guerra”, de Marcos Lopes, o escritor de 33 anos começou a criar histórias no bloco de notas do celular durante o sacolejo diário do trem.
Da tela do celular, a primeira experiência literária chega agora às prateleiras. “Fiel” (ed. Objetiva, 212 páginas, R$ 26,90) conta sobre a trajetória do adolescente Felipe, morador da favela de Antares, na zona oeste do Rio. Criado desde pequeno sob os preceitos da igreja evangélica, ele acaba sendo seduzido pelo poder e o prestígio de traficantes cariocas.
“Eu pensava: O [jornalista e escritor] Caco Barcellos foi taxista. Se ele conseguiu, eu posso conseguir. Comecei a me dedicar no texto, do celular passava para o caderno, do caderno eu passava para o computador, já tentando amarrar os capítulos”, ele conta, ao UOL, por celular, de dentro de um trem. A correria continua, mas hoje o trajeto dura meia hora a menos.
A inspiração veio da própria experiência como morador da favela, das histórias que acompanhou de amigos próximos e das intervenções do dia-a-dia no transporte público. “Se eu perco o foco, paro de escrever e presto atenção naquela história. O Felipe também dorme de madrugada nos ônibus e ouve aquelas conversas.” Na vida real, ao fundo da ligação, a reportagem escuta o grito de um vendedor ambulante. “Esse aqui vende cocada. E trabalha em abrigo de ex-usuários de drogas. Eu o conheço, inclusive”, conta.
A vida como ficção
Sem malabarismos e com uma linguagem direta, Jessé, no entanto, subverte o senso comum em "Fiel". Felipe é bom moço, educado e estudioso, mas, mesmo assim, passa a fazer parte de uma facção na favela.
“A gente quer ter importância no nosso meio, quer ser o melhor. O Felipe enxergou ali essa possibilidade. Ele passou a vida sendo cobrado, proibido de ouvir outras músicas que não fossem da igreja e vendo o pai dele achar justificativas para suas ações na Bíblia. Na igreja, os jovens acreditam que tudo o que acontece na vida é uma ação de Deus. Ele começou a achar que era Deus que estava o colocando naquele caminho”, observa.
A ascensão e queda do personagem no crime é um exercício de imaginação dos muitos caminhos que sua própria vida poderia ter tomado e de tantos outros Felipes que vivem na periferia. Jessé não é bom no futebol e não usa gel para manter o moicano no estilo Neymar como seu personagem, mas ele também se divertia escondido da família e frequentava a igreja evangélica.
“O Felipe deixa de ser o Jessé Andarilho quando ele começa a se envolver com o tráfico. Ele tomou vida própria. Qualquer pessoa, independentemente da realidade financeira ou afetiva, poderia seguir o caminho do crime”.
"Fiel" ganhou a aprovação de respeito de MV Bill. Rapper e autor de “Cabeça de Porco” e “Falcão – Meninos do Tráfico”, ele escreve na contracapa de “Fiel”: “A escrita é interna, vinda de um cara que viveu ali, bem de perto. E só não afundou na criminalidade porque foi resgatado pela arte”.
Para o leitor que não lê
Jessé é o primeiro autor das oficinas da Festa Literária das Periferias (Flupp) a chegar a uma grande casa editorial. O livro sai em parceria com a Favela Holding, empresa do produtor e ativista Celso Athayde. Foi Athayde que recebeu Jessé nas primeiras visitas do escritor à Flupp. “Eu queria ser lido, então escolhi cada palavra pensando no leitor que não costuma ler. Nossa atenção hoje é disputada pelo celular, o Facebook e infinitas redes sociais. Para isso, eu tive conhecer mais de literatura”.
Feliz com a experiência, Jessé segue nos trens diários, sempre com os dedos no celular. “Eu escrevo até hoje. Trabalho para c******, tenho dois filhos, tenho uma vida muito corrida. Então o tempo vago é agora [no trem]. Estou escrevendo alguns textos, que podem virar o próximo livro, aqui.”
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