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HQ de "A Morte de Ivan Ilitch" dá nova dimensão sombria à obra de Tolstói

Guilherme Solari

Do UOL, em São Paulo

11/09/2014 07h00

Considerada por escritores como Vladimir Nabokov uma das obras máximas da literatura russa, "A Morte de Ivan Ilitch" (1886) foi o primeiro livro de Liev Tolstói após ele ter largado momentaneamente a escrita para se dedicar à espiritualidade. O autor de vastos panoramas épicos como "Guerra e Paz" e "Anna Karenina" retornou às letras com um texto curto de menos de 80 páginas, mas de surpreendente profundidade e impacto.

"A Morte de Ivan Ilitch" é transformada agora em HQ pelas mãos do quadrinista brasileiro Caeto, como parte da coleção da editora Peirópolis que traz também clássicos como "Dom Quixote" (Miguel de Cervantes), "Odisseia" (Homero), "Os Lusíadas" (Camões) e "O Corvo" (Edgar Allan Poe) adaptados para quadrinhos por diversos artistas.

A versão da obra de Tolstói não suplanta a original, mas ajuda a dar uma nova dimensão, mais sombria, ao clássico. A escolha de manter muito do excelente texto original é uma das virtudes, e a vida --e principalmente a lenta morte-- do burocrata protagonista ganha ares mais claustrofóbicos com as imagens. A angústia de Ivan Ilitch é acompanhada conforme seu rosto definha. Ele se torna um prisioneiro de sua cama e encara a morte de forma bem literal na HQ.

Obra sempre atual

Na história, acompanhamos a trajetória de Ilitch, burguês que vai construindo uma carreira de relativo sucesso na burocracia judiciária. Ele é um sujeito de ambições simples, preocupado em ter sossego em casa, que passa a ter sorte no carteado. Até que uma doença faz desmoronar seu mundo de aparências e o coloca de cara com a inevitabilidade da morte e a futilidade de sua vida.

O ilustrador e quadrinista Caeto - Divulgação - Divulgação
O ilustrador e quadrinista Caeto: obra ao mesmo tempo clássica e pessoal
Imagem: Divulgação

Talvez o que mais chame a atenção para um leitor contemporâneo é como a obra é atual. Não apenas pelo fato de a morte ser uma questão constante para a experiência humana em qualquer época, mas também por mostrar como a vida de aparências da burguesia da Rússia do final do século 19 muito se assemelha com a da classe média do Brasil do começo do século 21. "A Morte de Ivan Ilitch" confirma a máxima do próprio Tolstói de que "a descrição de uma aldeia é a história do mundo".

"Toda parte do texto que iria virar imagem eu grifei de amarelo, o que iria sair grifei de vermelho e o que iria ficar, em verde. Tentei eliminar o que julguei não ter tanta importância para contar a história e que se repetia no texto", disse Caeto ao UOL. "O maior desafio foi tentar não ser redundante nas ilustrações, já que boa parte do trabalho tem um caráter mais ilustrativo do que de sequência de HQ".

O quadrinista contou que se inspirou na estética do filme "O Sétimo Selo" (1957), de Ingmar Bergman, sobre um cavaleiro que tenta atrasar o seu fim jogando xadrez com a morte.

O tabu da morte

"A Morte de Ivan Ilitch" é uma história sobre a morte e a fuga dela, tanto pelo próprio Ilitch como pela família e pelos amigos, que evitam cada vez mais o contato com o moribundo. Sua mulher, Prascóvia Fiódorovna, por exemplo, tem com ele uma relação marcada, primeiro, por brigas e, depois, por indiferença. "Na minha visão, os parentes do Ivan Ilitch se afastam dele a partir da hora em que o personagem fica doente e fraco para cumprir o papel que sempre cumpriu dentro daquela família", falou Caeto. "O personagem fugia daquelas pessoas e lhes dava dinheiro e conforto pra que ninguém cobrasse nada dele." 

Capa de "A Morte de Ivan Ilitch" - Divulgação - Divulgação
Edição de "A Morte de Ivan Ilitch" (Editora 34) com a mesma tradução da HQ, por Boris Schnaiderman
Imagem: Divulgação

"Eu me identifico com momentos do casal [Ilitch e Prascóvia], além do fato de meu pai ter passado os últimos dias de sua vida doente numa cama como retratei no 'Memória de Elefante' (Companhia das Letras)", falou Caeto, que agora trabalha em "Dez Anos para o Fim do Mundo", sobre a infância e adolescência crescendo no bairro da Vila Madalena, em São Paulo.

São particularmente tocantes as reminiscências cada vez mais constantes de Ivan Ilitch na busca por onde teria começado a rede de mentiras que tomou conta de sua vida, remoendo as memórias de infância, que de tão distantes pareciam "a recordação sobre alguma outra pessoa". Assim como os vestígios de amizade com o criado Guerássim, homem simples que se torna o companheiro dos últimos dias.

Ainda que a morte seja tabu e um dos assuntos empurrados para debaixo do tapete da sociedade ocidental, "A Morte de Ivan Ilitch" mostra como o inevitável chega e um mundo de aparências, status social, dinheiro e posições desaba.