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Flip abre nesta quarta com homenagem a Millôr Fernandes

Caricatura de Millôr Fernandes, criada por Alan Souto Maior para a exposição "Ao Millôr com Humor", em 2012 - Alan Souto Maior
Caricatura de Millôr Fernandes, criada por Alan Souto Maior para a exposição "Ao Millôr com Humor", em 2012 Imagem: Alan Souto Maior

Orlando Pedroso*

Especial para o UOL, em Paraty

30/07/2014 06h00

Dizem que toda unanimidade é burra. Não sei se é verdade mas sei que toda regra tem sua exceção. Na intersecção entre essas duas máximas é que encontramos Millôr Fernandes. Humorista, escritor, tradutor, desenhista, dramaturgo, jornalista e polemista, o autor de publicações como "O Pasquim" e "Pif-Paf", morto em 2012 aos 88 anos, é um desses casos raros de um sujeito que faz tudo bem.

"Se fizessem um gráfico da história do humor no Brasil, aquela linha vermelha que estava indo reta e lenta lá na parte de baixo, nos anos 50 e 60, faria  um rápido zig-zag bem para o alto e continuaria lá em cima até hoje. Esse zig-zag para o alto é o 'efeito Millôr'", resume Reinaldo Figueiredo, humorista e criador do "Casseta & Planeta", que participa da mesa de abertura da Flip nesta quarta-feira (30).

O tema desta edição da festa literária de Paraty? Millôr Fernandes.

"Millôr já disse que aceitaria tudo, menos uma estátua", brinca o curador do evento, Paulo Werneck, para quem a homenagem busca "reafirmar a importância do ilustrador, do desenhista entre os nossos grandes intelectuais".

Além da mesa de abertura - que terá ainda o também casseta Hubert e o cartunista Jaguar, parceiro de Millôr dos tempos de "Pasquim" -, a obra e o pensamento do "guru do Méier", como era chamado pelos amigos, será tema de outro debate na sexta-feira, reunindo os caricaturistas Cássio Loredano e Claudius e o jornalista Sérgio Augusto. Desenhos, cartazes e imagens de arquivo do homenageado também estarão em exposição na cidade histórica fluminense durante a Flip.

Indiretamente, a influência do humor de Millôr também poderá ser sentida até domingo em diversos outros debates e eventos da festa, que tem entre os convidados diferentes gerações de escritores e comediantes que, de uma forma ou de outra, beberam em seus trabalhos, da atriz global Fernanda Montenegro a Gregório Duvivier, que hoje surfa no sucesso dos vídeos do Porta dos Fundos na internet - mídia em que, não custa lembrar, Millôr também foi pioneiro, adotando ainda em 1986 o computador para publicar seu traço pixelado, frases, textos e experiências gráficas em um dos primeiros sites de humor da rede no Brasil.

Mas a Flip também está interessada no caráter contestador do sujeito de imprensa Millôr Fernandes. Para Werneck, "a crítica política do Millôr neste ano de eleição, de Copa, de acirramento político, é mais necessária do que nunca". Assim,  participam do evento este ano nomes como Marcelo Rubens Paiva, Persio Arida e Eliane Brum, além dos estrangeiros David Carr, celebrado jornalista do "The New York Times", e Glenn Greenwald, o norte-americano conhecido por ter revelado, em primeira mão, as informações de espionagem colhidas pelo ex-agente da CIA Edward Snowden.  

Para quem quiser conhecer a fundo a obra publicada de Millôr, a Companhia das Letras relançará na Flip alguns dos principais livros do cartunista, entre eles "The Cow Went to the Swamp", "Tempo e Contratempo", "Esta É a Verdadeira História do Paraíso" e "Essa Cara Não me É Estranha". Há também "Millôr 100 + 100: Desenhos e Frases", antologia organizada por Sérgio Augusto e Loredano e publicada pelo Instituto Moreira Salles.

Milton ou Millôr?
Nascido Milton Viola Fernandes, em 16 de agosto de 1923, Millôr perdeu o pai aos dois anos; a mãe, aos 11. O resultado disso, fora a óbvia dupla orfandade, foi a total perda de fé em Deus ou deuses. Crítico da religião, também torceu o nariz para a psicanálise cujos profissionais, dizia ele, são amigos da doença.
 
Descobriu na adolescência que o tabelião o havia registrado como Millôr por conta de um corte no "tê" fora de lugar e assumiu o nome que se tornaria sua marca registrada em tantos formatos, variações e cores quanto sua imaginação permitiu.
 
Cresceu em um tempo em que crianças ainda podiam trabalhar e foi contratado como contínuo na extinta "O Cruzeiro", a mais importante revista da época, que chegou a ter 750 mil exemplares semanais. 

Aos 16, foi convidado a trabalhar na revista "A Cigarra" e assinava seus desenhos e sátiras com o pseudônimo de Van Gôgo, e de volta à revista "O Cruzeiro", em 1946, estreia com o livro "Eva Sem Costela". Sutilmente, assinou a autoria com o pseudônimo de Adão Júnior.

Em 55, dividiu com Saul Steinberg o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires o que, cá entre nós, não é pouca coisa.

Entre novas criações, prêmios de teatros e publicações, Millôr ia criando polêmicas. Sempre defensor de seus direitos arrumou encrenca com quem se metesse a alterar seus textos ou a interferir em suas ideias. Aconteceu em "O Cruzeiro", nos "Diários Associados" e "Veja", onde publicou por cerca de 14 anos. Em 1964 edita a revista "Pif-Paf", um marco na imprensa alternativa brasileira e considerada por todos uma das mais importantes publicações do humor no Brasil. Não é impossível se acreditar que o "Pif-Paf" tenha sido o pai ou o irmão mais velho do Pasquim que ele ajudaria a fundar quatro anos mais tarde e do qual seria editor de 72 até meados de 75.

"Adorava ler seus textos e seus desenhos. Com 12 ou 13 anos comprei o livro '30 Anos de Mim Mesmo',  que, por muito tempo, foi meu livro mais manuseado, tanto que a capa acabou rasgando e eu tive que encadernar",  lembra o casseta Hubert. "O Millôr foi a maior admiração por um artista que eu tive na vida."

Carioca, o cartunista cuidava da saúde e corria todas as manhãs bem cedo na orla do Rio. Se gabava de ter inventado o frescobol. Isso não impediu que um AVC cruzasse seu caminho. Fragilizado, tentou se recuperar, até que no dia 27 de março de 2012 dona morte apareceu em seu quarto levando para sempre o gênio e a exceção que foi Millôr Fernandes.

Orlando Pedroso é artista gráfico, vencedor do Prêmio HQ Mix de melhor ilustrador nos anos de 2001, 2005 e 2006. É autor dos livros independentes “Moças Finas (2006) e “Árvres”  e dos infantis “Vida Simples” e “Uêba!” e membro do conselho da SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil.