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Com Movimento Armorial, Suassuna reinventou o Sertão de Euclides da Cunha

O escritor Ariano Suassuna, que morreu nesta quarta-feira, aos 87 anos, desfila em carro alegórico da escola de samba carioca Império Serrano, em 2002 - Caio Guatelli/Foha Imagem
O escritor Ariano Suassuna, que morreu nesta quarta-feira, aos 87 anos, desfila em carro alegórico da escola de samba carioca Império Serrano, em 2002 Imagem: Caio Guatelli/Foha Imagem

Anco Márcio Tenório Vieira

Especial para o UOL*

24/07/2014 06h00

A figura totêmica de Euclides da Cunha sempre esteve presente na vida de Ariano Suassuna: seja porque ela evocava, no seu tipo físico, o seu pai, João Suassuna, assassinado quando Ariano ainda era criança; seja pela leitura definidora de "Os Sertões". Mais do que qualquer outra obra, a literatura de Ariano (assim como os romances dos regionalistas de 30) sempre visitou a de Euclides. Porém, diverso da geração de 30, Suassuna não perpetuou as imagens que ele, Euclides, fixou do Sertão e, sim, as recriou por meio de uma “invenção fantasiosa”.

O Movimento Armorial, lançado em 18 de outubro de 1970 na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, se alinha com os demais movimentos artísticos brasileiros pela busca de uma arte erudita que plasme a nossa identidade cultural. Porém, diverge desses mesmos movimentos artísticos brasileiros que o antecederam por colocar em primeiro plano o universo cultural e lúdico do Sertão em detrimento do universo cultural e lúdico manifestado nas demais regiões do País. Valendo-se dessa matéria simbólica, Ariano e os seus companheiros de movimento pretendiam não apenas construir uma arte erudita autenticamente brasileira, mas uma arte pouco afeita tanto às preocupações sócio-políticas do regionalismo de 30, quanto às explicações deterministas e biológicas que o olhar cientificista de Euclides encerrou em sua obra.

Apesar de ser uma obra cientificamente datada, a força das imagens que Euclides fixou do Sertão e do sertanejo em sua obra se deve, certamente, ao fato de que essas imagens não são frutos da imaginação de algum escritor literário, de alguma retórica vã, mas da observação de um homem de ciência. O discurso “científico” que fundamenta "Os Sertões" leva o leitor a crer que as suas sentenças devem ser acatadas como a mais pura “interpretação” daquele Brasil real que emparedou o Brasil oficial. Junte-se a essa “ciência”, um texto que também lança mão de todos os recursos retóricos que a língua portuguesa poderia dispor.

Ou seja, se a obra de Euclides flerta com a literatura, pois recorre aos mesmos recursos retóricos e estilísticos dos escritores literários, ela, por sua vez, se afasta da sua “disposição mental” ao se pautar pela análise “objetiva” do seu tema, pela interpretação persuasiva, e por desdenhar dos recursos ficcionais. Tudo ali parece impregnado de verdade: desde a descrição da terra e dos que lá habitam, até as cenas de Guerra e os seus protagonistas.

O resultado é que Euclides não só fixou a imagem do Sertão tal como ela se dá em nosso imaginário, fornecendo o ambiente sócio-econômico-cultural em que se movimentou a literatura de 30, o Cinema Novo, a telenovela, o teatro e as artes plásticas ao longo do século 20, mas construiu também um espaço mítico por excelência: ele, o Sertão, encerraria o Brasil profundo, o Brasil ainda desconhecido e, por decorrência, se colocava como o maior desafio para o projeto de modernidade que o País e a República almejavam.

Ao tomarmos contato com a Guerra retratada por Euclides, saímos com a sensação de que lemos sobre o último e definitivo choque impetuoso entre, de um lado, os remanescentes dos cruzados, que tiveram sua versão tardia e extemporânea na pessoa de Dom Sebastião (o esperado salvador evocado pelos movimentos messiânicos do Sertão), e de outro, os filhos espirituais dos aventureiros e modernos navegadores portugueses que, nas palavras de Camões, se expuseram em “mares nunca de antes navegados” para dilatarem “A Fé, o Império, e as terras viciosas”. Dilataram sim, mas jamais puderam reconstituir, em sua unidade teocrática, como quisera Dom Sebastião, o mundo que ficou para todo perdido no medievo.

Crítica à modernidade
É este Brasil real, mítico, “perdido no medievo”, mágico e maravilhoso que a literatura de Ariano e o Movimento Armorial vão buscar na obra de Euclides e, por decorrência, tentar restituir, por meio da estética, a sua “unidade teocrática”. Desse espaço geográfico eles não recolhem o determinismo, o positivismo e o evolucionismo social de "Os Sertões", mas, sim, o “espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste”; as formas fixas da “sextilha”, do “martelo”, do “galope-à-beiramar”; a música de viola, rabeca, zabumba, pífano e o canto do aboio; as xilogravuras dos folhetos de cordel com suas imagens sem perspectiva, profundidade ou relevo; a heráldica popular manifestada nos ferros de marcar bois e nas bandeiras das cavalhadas; a alegoria da onça, dos dragões, dos “cachorros endemoniados”, dos ex-votos, dos santos, profetas, mitos e personagens nordestinos.

Todo esse universo simbólico será lido à luz dos autos medievais, da comédia de Plauto, do teatro barroco ibérico, da tragédia de Shakespeare, da literatura picaresca, do romance de Miguel de Cervantes, do teatro e do romanceiro de Garcia Lorca, do canto gregoriano, dos “motetos medievais ou da música renascentista menos cortesã”, da forma do ícone medieval, das cores puras, e das alegorias douradas das talhas barrocas.

Assim, o que em Euclides era uma região que encerrava todas as condições para gerar monomanias raciocinantes ou instintivas — a chamada loucura moral — Suassuna, como um crítico ferrenho da modernidade, vai encontrar, pela via do universo simbólico, a matéria-prima mais pura para se forjar uma arte que se queira, dentro da sua concepção, verdadeiramente brasileira. O que era hipoteca para Euclides, agora é lucro para Suassuna. Vejamos alguns exemplos.

Para Euclides, o resultado das três raças formadoras do Brasil era “uma mestiçagem embaralhada”, pois “o mestiço [...] é, quase sempre, um desequilibrado”, só comparável “aos histéricos”. No entanto, por ter ficado isolado da civilização, sem contato com a “raça forte” (leia-se, o branco), o sertanejo tornou-se antes um mestiço “retrógrado” do que um “degenerado”. Logo, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Invertendo esse raciocínio, Ariano enobrece seu personagem de "A Pedra do Reino", Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, como descendente “dos legítimos e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino do Sertão, que cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do Brasil, de 1835 a 1838, transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança de sangue e decreto divino”.

Segundo Euclides, o sertanejo — antítese do gaúcho — “é desgracioso, desengonçado, torto”, sendo “impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante”, apesar do seu aspecto “recordar, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura”. Ariano, por sua vez, tira esse cavaleiro da sua vida ordinária, transporta-o para o centro de uma Cavalgada, denominada por ele de “Armorial Cavalaria Sertaneja”, e o cobre de alegorias. Assim, a simples “armadura” de couro do sertanejo transfigura-se em “armadura negra e escarlate, de placas de aço, incrustada de esmaltes e brasões, parecendo, o todo, a carapaça dura, calcária, espinhosa e violeta-escarlate de um crustáceo gigantesco encravado num penhasco”.

Falando do “caráter variável da religiosidade sertaneja”, Euclides nota que as condições estóicas do clima e da terra no Sertão dão ao sertanejo a “consciência da fraqueza para as debelar”, daí ele “apelar constantemente para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade”. Como exemplo, Euclides recorre à promessa que foi aventada no episódio da "Pedra do Reino", a de que o sangue derramado das crianças sobre a pedra estabeleceria o “advento do reino encantado do rei D. Sebastião”.

Em Ariano, o fanatismo e os recursos do maravilhoso denunciados por Euclides transformam-se na seguinte fala de Quaderna: a de “que o exército d’El-Rei Dom Sebastião viria era para destruir os poderosos”, que os cachorros degolados junto com as crianças iriam ressuscitar em forma de dragões, “para devorar todos os proprietários, repartindo-se então as terras dos finados com os pobres”. Ou seja, o que era fanatismo para Euclides, para Ariano é “’um como que pensamento socialista’”.

Movimento Armorial
Onde Euclides via a última fronteira do medievo a ser debelada pela força da civilização, Ariano, superando o cientificismo de Euclides, encontra o Brasil profundo que deve servir de fonte perene para uma arte autenticamente brasileira. No dizer do personagem Euclydes Villar, de "A Pedra do Reino", a literatura se alimenta da “invenção fantasiosa”, só através de um pouco de “mentira” é que os poetas podem ver “joias, ouro, pratas e pedras preciosas em todo canto” e, por sua vez, podem construir o “Reino Encantado da Literatura”.

É por meio dessa “invenção fantasiosa” que Ariano vai buscar elementos para se contrapor ao que ele caracteriza como o principal traço do teatro moderno: a busca constante pela originalidade. O Sertão, aqui, seria o guardião de manifestações artísticas que a modernidade colocou no limbo: o teatro popular dos brincantes, as danças dramáticas, o romance de origem ibérica composto em versos de sete sílabas, o recurso ao maravilhoso, a poesia épica. Ou seja, aquilo que um dia fora europeu — o teatro grego, os autos medievais, o teatro elisabetano e vicentino —, terminou por se assentar como traço da cultura popular do Sertão.

Para Ariano, retomar esse universo simbólico é religar-se “à verdadeira tradição do teatro europeu de que descendemos, e afastados do fanado teatro moderno, falsamente refinado, bem-educado, bem-comportado, sem grosserias, trocadilhos ou frases de mau gosto, mas cheio de problemas sem sentido — em suma, um teatro que tem tudo, menos vida autêntica, autêntica força e verdadeiro sentido humano”. O mesmo raciocínio vai alimentar o projeto dos seus romances, ao trazer para o Brasil da segunda metade do século 20 um modo de narrar das novelas de cavalaria, inserir personagens picarescos e fundir o trágico, o cômico e o épico num mesmo gênero literário.

Vendo no Sertão a verdadeira fonte para uma arte erudita brasileira, Ariano inverte os princípios que regem os pressupostos de Euclides: não é a modernidade europeia, a “raça forte”, falsamente brasileira, que deve salvar o Sertão, mas, sim, o Sertão é que deve orientar e salvar o Brasil. Imbuído de um projeto nacionalista de cores fortemente românticas, Ariano termina por colocar em suas mãos e nas do seu Movimento Armorial as ferramentas que vão separar o joio do trigo, ou seja, o que são as verdadeiras raízes de uma arte erudita brasileira das que apenas macaqueiam a europeia. Mais: o que caracteriza os signos do verdadeiro Sertão dos ouropéis.

Um exemplo de como se processa seu raciocínio, podemos ler no seu ensaio “Cinema e Sertão”, de 1972, cujo objeto de análise é o filme "O País de São Saruê", de Vladmir Carvalho. Escreve Ariano: “Há muito tempo que escrevo fazendo apelo aos compositores e cineastas do Nordeste, para que procurem uma música erudita de raízes realmente sertanejas, a partir do termo de pífanos, da rabeca e da viola sertaneja — uma música áspera, forte e despojada como o próprio sertão. Uma música que não tenha nem ‘a tristeza fácil, em lá menor, da seresta’ (como eu dizia em 1946); nem o tom cafajeste do choro; nem as facilidades do baião popularesco — coisas que são muito boas, mas em seus lugares, não na música sertaneja”. Em Ariano vamos sempre encontrar um olho na “invenção fantasiosa”, e outro encerrando a palmatória da nacionalidade.

Imbuído do mesmo espírito do nacionalismo romântico, Ariano busca no Sertão tanto uma ordem simbólica quanto a verdadeira tradição das formas e dos gêneros artísticos que constituem a arte ocidental e que foram esquecidos pela arte moderna (o teatro popular, as danças dramáticas, o recurso ao maravilhoso, a poesia épica). É por meio do Sertão que o Brasil poderia retomar a verdadeira tradição artística ocidental: aquela que foi legada pela cultura clássica grego-latina e medieval, particularmente a ibérica. Porém, não como fizeram os românticos europeus, que buscaram em uma idealizada Idade Média inspiração para as suas obras, mas nas formas artísticas que ainda seriam válidas para refundar a verdadeira arte brasileira e, por extensão, ocidental. Da modernidade, interessa, apenas, aquelas manifestações artísticas que carregam os traços formais desse universo clássico e medieval, a exemplo do teatro e do cancioneiro de Garcia Lorca.

Assim como há um Sertão antes e depois de Euclides, há um Sertão antes e depois de Ariano Suassuna e do Movimento Armorial. Afora muitas das suas posições polêmicas e não raras vezes reacionárias sobre Arte e Cultura, creio que é esse Sertão “fantasioso”, lúdico, mágico, maravilhoso, colorido e alegre, como se fosse um eterno espetáculo circense, que foi a maior contribuição de Suassuna para a literatura de língua portuguesa. A imagem do Sertão dilatou-se e se enriqueceu com a sua obra e, principalmente, se coloriu no “Reino Encantado da Literatura”.

Anco Márcio Tenório Vieira é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da UFPE, autor de Luiz Marinho: o sábado que não entardece (FCCR, 2004), Adultérios, biombos e demônios (PPGL, 2009), organizou o volume Poesia e prosa: Orley Mesquita (CEPE, 2012). É coautor de Hermilo Borba Filho e a dramaturgia: diálogos pernambucanos (FCCR, 2010).