Malandro e de formação militar, Mussum era duas pessoas, diz biógrafo
Leonardo Rodrigues
Do UOL, em São Paulo
27/06/2014 06h00
Quis o destino que a primeira biografia de Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, nascesse em uma mesa de botequim. Foi nela, em uma descompromissada cerveja pós-expediente, que o jornalista Juliano Barreto teve o lampejo da ideia, incentivado pelo colega e também escritor Alexandre Versignassi. Após dois anos de pesquisa, prosa e incontáveis visitas à escola de samba Mangueira, "Mussum Forévis - Samba, Mé e Trapalhões", seu primeiro livro, chega na próxima semana às livrarias.
O caso do biografado, um sambista de origem humilde que caiu no humor meio que de paraquedas, como o recruta da Aeronáutica que foi, é daqueles em que criador e criatura se entrelaçam. O Mussum da vida real era, sim, um homem malandro e bom de copo, mas também um ferrenho defensor da família e dos valores advindos de uma rígida formação militar.
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Decifrar essas faces aparentemente incompatíveis serviu de fio condutor para Barreto, que destaca na obra um lado importante e por vezes relegado: o do músico de talento. O do passista da Mangueira. Do sujeito que não apenas montou Os Originais do Samba, grupo composto só por ritmistas de agremiações, mas que empreendeu parcerias com gigantes como Baden Powell, Elis Regina e Jorge Ben Jor. Para os bons entendedores, entre eles Alcione, o melhor tocador de reco-reco do universo.
Filho de uma empregada doméstica negra e analfabeta, Antônio Carlos nasceu pobre, em 1941, no Morro da Cachoeirinha, zona norte do Rio. Cresceu no subúrbio, “se alimentando de sobras”, e viveu uma adolescência linha dura em um colégio interno que mais tarde viraria uma unidade da Febem.
Para sobreviver, fazia dos bicos mais variados: mecânico, cozinheiro, faxineiro e qualquer outra nota que lhe rendesse trocados. Nos anos 1960, depois do serviço militar, pôde enfim se entregar à verdadeira vocação: o samba e a boemia da Mangueira. Formou com os amigos Os Sete Modernos, futuros Originais. Fez sucesso. Ganhou discos de ouro e viajou pelas Américas. Conquistou Acapulco, no México, anos antes do Chaves.
De Grande Otelo recebeu em 1965 o eterno apelido de “Mussum”, um peixe de escamas negras, que logo chamaria a atenção de um certo Renato Aragão, ao vê-lo em um programa de TV mostrando lábia ao tagarelar “causos” no intervalo entre as músicas. Um talento cênico raro. Um rei da arte do improviso.
Já como integrante do grupo humorístico “Os Insociáveis”, na TV Record —embrião de “Os Trapalhões”—, destacou-se pelo carisma, pelas gírias e pelo jeito único e cheio de "is" de falar —sugestão de Chico Anysio. O coração imenso conquistou e posteriormente entristeceu o Brasil, com sua morte no dia 29 de julho de 1994, fruto de uma série de problemas cardíacos.
Hoje, Mussum vive na internet, na profusão de memes, vídeos e de um vocabulário construído à base de muito "mé" e "cacildis", que dificilmente um dia deixará de ser lembrado. Uma história rica, repleta de personagens —muitos deles interpretados por um homem só—, e que agora ganha sua primeira versão oficial. Leia abaixo entrevista com o autor Juliano Barreto.
ESPECIAL RETRATOS BRASILEIROS COM MUSSUM, DO CANAL BRASIL
UOL - Como surgiu a ideia do livro?
Juliano Barreto - Eu trabalhava na editora Abril e havia um boteco lá atrás. E um dia estava conversando com um amigo, o Alexandre Versignassi, autor de “Crash - Uma Breve História da Economia”, numa sexta-feira depois do trabalho. Estava falando que o livro dele era muito bom, sempre no top 20 dos mais vendidos, e que ele tinha que fazer outro livro assim, popular. Sei lá, a biografia do Mussum. Ele retrucou: “Boa ideia. Por que você não apresenta esse projeto na editora?”
A ideia do livro era juntar várias histórias e fazer um condensado em vários contos. Mas foram surgindo tantas coisas que acabou virando uma biografia de verdade. Do nascimento até a morte, e, depois, com a fama que ele conquistou na internet.
Qual foi a maior dificuldade do processo de produção?
Uma das maiores dificuldades foi encontrar referências. Não existem outros livros. O que existe é um documentário, o “Mundo Mágico dos Trapalhões”, que é bem superficial e curto, e que depois descobri que tinha até alguns erros. Além de algumas matérias especiais do Canal Brasil.
O Mussum já era seu Trapalhão favorito?
Acho que eu não tinha um Trapalhão favorito. Hoje, obviamente, seria o Mussum. Mas tenho uma lembrança muito grande de todos na infância. Tinha os produtos, o gibis, as revistinhas para pintar. Eu nem lembrava mais, mas, durante a apuração, descobri que tive a “Conguinha dos Trapalhões”, um sapatinho que vinha com uma chave de fenda, que eles lançaram nos anos 1980. É a primeira lembrança que tenho. Assistia muito na época, mas "pirei" mesmo com as reprises.
O que de mais interessante você descobriu?
Muita coisa. Entrevistei mais de cem pessoas. Há muitas histórias inéditas, da infância dele. Quando você conta a história de um cara rico, bem nascido, você consegue, por exemplo, chegar à Itália, de onde veio o primeiro tataravô. Mas, quando é uma pessoa pobre, é realmente muito mais difícil. Descobri que a infância dele foi muito bem pobre e complicada. Até a adolescência, ele estudou num colégio interno. Consegui alguns detalhes dsse período e, depois, dos primeiros anos da carreira dele. Ele fez uma viagem para o México nos anos 1960 que foi muito legal. Ele fez sucesso em Acapulco anos antes do Chaves.
Descobri muita coisa do começo da carreira dele. Por exemplo, que antes dos Originais ele tocou nos Sete Modernos. E esse conjunto teve uma história super rica. Pesquisando jornais dos anos 60, descobri que eles faziam parte da vida cultural do Rio de Janeiro.
Mussum era um sambista, filho da boemia. Apreciava beber, mas, ao mesmo tempo, teve formação militar e era rígido com os filhos. Isso lhe chamou atenção?
Muito. Ele era duas pessoas ao mesmo tempo. Isso era muito a cara dele. Frequentou colégio profissionalizante no Rio, em regime de internato, e estudou para ser mecânico. Ele via a família só uma vez por mês. Dormia às 20h e tinha que acordar às 5h para cantar o Hino Nacional. Foi quase um curso preparatório para a vida militar na Aeronáutica, que foi uma extensão disso, mas um pouco mais "light". Apesar das muitas limitações na infância, ouvindo quem o conheceu na época descobri que ele sempre foi um moleque engraçado e feliz, apesar de tudo.
E isso continuou depois, profissionalmente.
Demais. Ao mesmo tempo ele que era músico, era humorista. Era um cara ciumento com a mulher, mas saía e tinha seus casos com outras. Sempre houve essas dualidades. Mas o principal da história é que ele teve uma vida muito dura. E foi um artista que venceu pelo talento, em uma época de grandes artistas, em que você tinha que ser muito bom para se destacar.
O Mussum é tido por muitos como o mais carismático dos Trapalhões. Como explicar essa popularidade depois de tanto tempo?
Acho que hoje se deve principalmente à internet. No final dos anos 1990, a Globo tinha um programa com reprises dos melhores momentos de todos os tempos dos Trapalhões. Quem escolhia os esquetes era um ex-diretor, o Maurício Sherman, além de outras pessoas que trabalharam nas épocas áureas.
Entre essas coisas mais legais, algumas foram parar no videocassete das pessoas e, anos depois, no YouTube. Eram quase sempre esquetes curtos, e, neles, o Mussum se destacava muito. Ele tinha aquela dificuldade de decorar textos, de ficar preso neles. Então os videos mais legais dele são os curtos, em que ele está sozinho. Um tipo de linguagem que casou muito bem com a internet.
Como foi a conversa com a família? Precisou de autorização?
Sim. Apresentei primeiro o projeto na editora. Eles gostaram, e a gente foi atrás da família para pegar a autorização. Ele tem cinco filhos, fora a viúva, cada um com uma mulher. Mas isso não foi uma dificuldade. O filho mais velho deles é advogado e representa legalmente a família. Ele conversou pessoalmente com a editora e negociou os royalties e tudo mais. A família me ajudou muito. Tive acesso a 90 fotos do arquivo de família, contato de amigos de infância. E não tive de lidar com a parte ruim, que é a grande sombra das biografias não-autorizadas: a pré-censura.
Como neste ano a morte do Mussum completa 20 anos, foi um jeito de fazer uma homenagem e mostrar para todos a parte da música, que é muito pouco conhecida. O Mussum gravou com Baden Powell, Elis Regina, Elza Soares, Jair Rodrigues. Gravou músicas do Vinicius, do Tom. Foi campeão do Carnaval, tanto no Rio quanto em São Paulo. Fez muita coisa com o Jorge Ben Jor. São coisas que pouca gente sabe.
MUSSUM NOS ORIGINAIS DO SAMBA