Quadrinista tenta resgatar Jesus do cânone religioso na HQ "Yeshuah"
Talvez nenhuma figura tenha uma imagem mais presente na civilização ocidental do que Jesus Cristo. Portanto sempre que um artista tenta se distanciar da versão canônica para reimaginar Jesus de seu ponto de vista individual, despindo-o da imagem que as religiões criaram dele, é como se mexesse em um vespeiro.
Pois foi essa a proposta do quadrinista Laudo Ferreira quando começou, há 13 anos, a produzir a série "Yeshuah", que chega agora à sua conclusão com o terceiro volume: "Yeshuah: Onde Tudo Está" (Devir). A HQ acompanha a jornada de Jesus a Jerusalém para a Páscoa, a última ceia, a prisão, o julgamento e sua execução, tocando em passagens bíblicas como o apedrejamento da mulher adúltera e a ressurreição de Lázaro.
Ferreira se baseou em uma pesquisa de textos apócrifos de diferentes religiões sobre Jesus, além de sua própria visão autoral, tentando "resgatar" a imagem do Filho de Deus de mito intocado, idolatrado e temido para algo mais próximo, humano e, portanto, também imperfeito. O quadrinista conversou com o UOL sobre a criação da HQ, como agradar a crentes e descrentes e as polêmicas envolvendo a obra.
UOL - Você passou 13 anos fazendo a trilogia de "Yeshuah". O que o levou a começá-la?
Laudo Ferreira - A questão espiritual, mística, a busca pelo sagrado sempre esteve presente em meu trabalho. Então, por volta de 1999, a ideia de fazer uma história em quadrinhos contando a vida de Jesus estava muito forte em mim. Porém, a intenção era contar de uma maneira linear e não em blocos, como é nos evangelhos canônicos, e principalmente dentro da minha perspectiva, da minha visão. A figura de Jesus, tirando toda a crosta pesada de séculos que a Igreja Católica criou em cima, e que de certa forma transformou sua figura em algo oposto ao que talvez realmente tenha sido, é de uma importância ímpar para a história humana, pela sua mensagem, pelo significado para cada um.
Como foi o processo de pesquisa?
Aos poucos fui entendendo quais eram os autores, pesquisadores, teólogos e filósofos que seriam interessante para ler, assim como textos apócrifos e visões de outra religião, como a muçulmana, que tem um apócrifo contando a história de Jesus. Li aproximadamente uns 200 livros, conversei com alguns estudiosos. Li muita coisa, desde estudiosos modernos como Geza Vermes, passando por Jacob Boehme, filósofo e místico incrível que viveu no século 16, até Osho e Krishnamurti. E fui moldando um raciocínio pessoal para toda essa história. Porque, apesar de toda essa pesquisa, minha visão pessoal, autoral, é que prevaleceu.
Você encontrou reações negativas?
Muita gente religiosa entendeu a proposta, mas muitas outras pessoas não, pois houve um choque de interpretações da história, que, acreditando ou não, já está enraizada no ser humano. E qualquer coisa que saia daquela visão tradicional choca. Andaram me criticando em blogs e jornais pela forma como mostrei Jesus, por algumas sequências nos dois livros lançados, como no primeiro, onde mostrei toda a sequência do parto de Jesus literalmente, inclusive ele acabando de sair de dentro de Maria, ainda no cordão umbilical e sujo da placenta. Houve até quem chegou a escrever na página da web de um grande jornal de São Paulo, que havia feito uma matéria sobre o primeiro livro, que eu estava querendo me promover às custas de Jesus. Como se estivesse me juntando ao coro dos supostos polêmicos ao tentar ser mais um autor que usa da figura de Jesus para ridicularizar a Igreja. A ideia é justamente oposta. Nem ajoelhar e rezar na missa de domingo nem chutar a cruz e, sim, mostrar, ou tentar mostrar, uma possibilidade mais significativa, mais humana e consequentemente mais divina e sagrada, sem dogmas ou temores.
Como escrever uma história sobre Jesus que interesse aos céticos e não aliene os crentes?
A princípio, a ideia é difícil, pois a história de Jesus está enraizada na cultura humana como ícone religioso, católico. Porém, há a possibilidade de despir sua figura dos mitos religiosos para que qualquer um possa enxergar um homem forte, com toda uma mensagem para que cada um trabalhe e encontre o sagrado em si. Ele se tornou algo que idolatramos, tememos, reverenciamos, porém, sabemos que nunca poderemos ser, então nunca poderemos pensar em alcançar um estado de amor e compaixão para com todos. Isso vai nos tronar sempre inferiores, sempre abaixo, enquanto, em sua própria história, Jesus prega essa mudança interior para que o externo mude, e aí todos possam ser iguais, possam ser como ele. Um socialismo além dos sentimentos politiqueiros.
Um tema que você aborda em "Yeshuah" é a espiritualidade sem religião. É possível ver hoje a história de Jesus de forma desprendida de milênios de dogmas e indução à culpa?
Acredito que muita gente hoje em dia busca essa espiritualidade sem religião. Não precisamos temer mais nada, um Deus Big Brother que tudo vê e que tudo condena, não precisamos mais mudar nossa atitude pensando em Deus. Precisamos buscar um caminho de amor e compaixão, de entendimento e compreensão, menos politicagem e mais humanismo. Menos violência, menos ódio. Pode parecer um sentimento utópico, mas é a única solução. A figura “pura” de Jesus, livre de “religião”, traz todo esse sentido humanista de liberdade. Vale lembrar que num momento em que todo seu povo vivia nas regras de dez mandamentos, ele sintetizou tudo com um único sentimento, “Ame ao próximo como a ti mesmo.”
O que ficou para você depois de concluir "Yeshuah"?
Acredito que o objetivo da arte é curar. Em qualquer sentido. A arte tem que trazer o poder curativo, mesmo que muitas vezes esteja numa atitude de instigar, mas que instigue a mudança, e a mudança sempre traz um momento posterior, de novos entendimentos. A tentativa com a trilogia “Yeshuah” não é tão somente de trazer um olhar mais real à figura de Jesus, mas entendermos essa jornada humana, representada na figura dele, de nascimento, caminhada, entendimentos, descobertas, gratidão e, aí, o renascimento. Todos devemos passar por esse caminho.
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