Em projeto que tomou 4 anos, quadrinista reconta história de Dom Pedro 2º
Um garoto de 5 anos que se torna imperador após seu pai abdicar do cargo. A história de poder de Dom Pedro 2º, o último monarca do império brasileiro, começou bem cedo. Ao longo de 58 anos no comando do país, de 1831 a 1889, o mandatário se destacou pela habilidade em lidar com os jogos políticos e por ser um grande incentivador das artes --fomentou o neoclassicismo, incentivou a literatura indigenista romântica, o teatro e a fotografia.
"Pedro 2º foi um estadista voltado para o desenvolvimento cultural do país. É claro que se tratava de um projeto oficial e palaciano, mas sua importância é inegável. Era um grande performer, um mestre na arte de dissimular. Nada era pessoal nos seus diários, nada era íntimo em suas manifestações", descreveu ao UOL Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP (Universidade de São Paulo), que, em parceria com o ilustrador Spacca, produziu o livro "As Barbas do Imperador".
Lilia é a coautora da obra lançada recém-lançada, que apresenta a história do monarca em quadrinhos. O título vem somar-se a uma considerável produção que o país já possui de HQs que tratam de temas históricos. Dos mesmo autores há também "D. João Carioca", que narra a história do príncipe que fugiu de Portugal e mudou com toda a sua corte para o Brasil. No mesmo estilo, existem ainda trabalhos como a série "História do Brasil em Quadrinhos", de Edson Rossatto; "A Primeira Guerra Mundial", de André Diniz; e "Santô e os Pais da Aviação", do próprio Spacca.
A versão em quadrinhos de "As Barbas do Imperador" nasceu do misto de biografia com ensaio homônimo que Lília já havia feito de Pedro 2º. Foi Spacca quem deu a ideia de adaptar a obra, que vendeu mais de 70 mil exemplares, para uma outra linguagem e a autora gostou da proposta. "Como já tínhamos feito o 'D. João Carioca', pensamos que deveríamos continuar na história e abordar o império. Pude explorar aspectos em que vim me aprofundando depois da publicação do livro, como a própria fotografia e a pintura neoclássica brasileira, assim como o sistema escravocrata".
Lilia contou que, na época das pesquisas para a obra original, que nasceu da defesa de sua tese de livre docência na USP, coletou mais de 2.000 imagens, entre desenhos, gravuras caricaturas e fotos. Esse material foi bastante importante para que o estudo pudesse ser adaptado para os quadrinhos e, assim, atingisse um público diferente, de outra faixa etária. "Como cientista social, formada e atuando numa universidade pública, penso que tenho a obrigação de expandir e veicular minhas pesquisas. É preciso adaptar sem facilitar e foi isso que fizemos, até porque o Spacca é, ele próprio, um pesquisador de mão cheia".
Pesquisador de mão cheia
Para realizar o seu trabalho, Spacca primeiro leu os capítulos de "A Barba do Imperador" original e os resumiu, a fim de fazer um simples mapeamento, ao mesmo tempo em que já copiava trechos importantes do livro. Em seguida, imaginou o que poderia colocar em cada página, passou as ideias para o papel, determinando quais imagens mereciam destaque, e selecionou os textos que seriam utilizados.
Para se chegar a esse ponto, considerado o final do roteiro, levou aproximadamente oito meses entre leituras, pesquisas e desenhos. O passo seguinte foi finalizar cada um dos quadrinhos, a um ritmo de duas páginas por semana. Ao todo, o trabalho de Spacca em "As Barbas do Imperador" levou quatro anos --essa dedicação ao que faz já rendeu diversos prêmios ao quadrinista, como o HQ Mix e o Salão de Humor de Piracicaba.
Ao longo tanto de "As Barbas do Imperador" quanto de "D. João Carioca", é possível encontrar diversos desenhos inspirados em pinturas ou fotografias, recursos que Spacca usa de apoio para construir a sua narrativa visual. “Esses são os desenhos mais fáceis; a cena está composta, então não preciso procurar por objetos, apenas, basicamente, fazer uma caricatura da imagem que já está pronta. Contudo, é preciso ter em mente que algumas dessas obras são documentos do que aconteceu, enquanto outras são recriações, com maior ou menor desejo de representar a realidade. São imagens carregadas de intenções, mas há aquelas que considero bastante fiéis ao real”, conta.
A preocupação à fidelidade com o real, aliás, é um tema que costuma nortear os debates sobre obras em quadrinhos que, de alguma forma, procuram retratar fatos verídicos. Spacca aponta essa necessidade de se ter uma obra completamente ancorada na verdade como um dos grandes desafios desse tipo de trabalho. “Existe um esforço para se guiar pelo que se averiguou, pelo que está documentado, ou ao menos pelo plausível”, argumenta ele que, em “D. João Carioca”, apresenta uma espécie de making of de suas pesquisas, mostrando exatamente a busca pelo pequenos detalhes de cada desenho, como o funcionamento do mecanismo de uma arma ao dispará-la.
Contudo, o quadrinista assume que qualquer obra sempre será no máximo uma versão do real. “Não existe narrativa 100% verdadeira ou idêntica aos acontecimentos. Mesmo nas obras que se pretendem rigorosamente históricas, a realidade é simplificada a seus momentos mais cruciais, é sempre uma estilização da realidade. Uma longa conversa, por exemplo, pode ser resumida em dois ou três quadros. Portanto, o que podemos fazer é tentar manter o espírito e o sentido dos fatos, com a escolha de formatos análogos ao real, ou verossímeis”, argumenta. “Enfim, o essencial é ter desde o início um desejo de sinceridade”, completa.
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