Opinião: Machado não gostaria de permanecer desconhecido para quem não lê
Sou escritora e trabalho há 18 anos com o incentivo ao hábito da leitura. Estar entre leitores e participar do processo de descoberta do mundo das letras é o que me faz feliz e me motiva. A experiência acumulada estimulou-me a criar um projeto que visa a distribuição de clássicos da literatura adaptados. O público para o qual desenvolvi essa ação é formado por não leitores e leitores novos, de todas as idades e faixa de renda. Em geral, pessoas que jamais se aventuraram no maravilhoso universo de autores como Machado de Assis e José de Alencar. O foco específico do projeto é a doação de livros para pessoas que não tiveram oportunidade de estudar ou tiveram acesso a um ensino de baixa qualidade: jovens, adultos e idosos que não completaram o ciclo educacional e são constantemente excluídos do acesso à cultura.
Recentemente, o Sesc e a Fundação Perseu Abramo divulgaram uma pesquisa sobre hábitos culturais dos brasileiros. O levantamento aponta para uma triste realidade: “89% (dos entrevistados) nunca foram a um concerto de ópera ou música clássica em sala de espetáculo e 83% em qualquer outro local; 75% nunca foram a espetáculos de dança ou balé no teatro; 71% nunca estiveram em exposições de pintura, escultura e outras artes em museus ou outros locais e 70% nunca foram a uma exposição de fotografia.” É de ficar pasmo. No universo da leitura, a maioria (58%) não leu nenhum livro nos últimos 6 meses e os que leram possuem uma média de apenas 1,2 livros lidos neste período. A Bíblia é o segundo livro mais lido. A boa notícia é que o interesse por romances – assim, genericamente – lidera as atenções. Essa é a realidade do nosso país.
Por trás desses números, no entanto, existem rostos e vidas. Pessoas como o Seu Roberto, motorista de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona Nice, copeira do escritório. Eles são não leitores. Foi pensando neles que elaborei o projeto, que é desenvolvido de acordo com as determinações do PNLL. Em parceria com a Secretaria do Livro e Leitura do Ministério da Cultura, foi idealizado com o desejo de contribuir para a democratização do acesso à leitura em nosso país.
Acredito, realmente, nas adaptações como instrumentos de acesso à literatura e, mais que isso, as considero necessárias. Adaptação de clássicos, aliás, é uma prática que sempre existiu. Trata-se de um grande negócio para a indústria editorial, o que pode ser verificado pela enorme quantidade de obras adaptadas que se encontram à venda nas livrarias e que fazem parte das listas de compras do governo. Sou grata à Editora Abril por ter editado Clássicos da Literatura Juvenil, dentre eles "Oliver Twist", "O Conde de Monte Cristo", "O Corcunda de Notre-Dame", "O Máscara de Ferro" e "A Ilha do Tesouro". Foi por meio dessas adaptações que adentrei o universo de Dickens, Victor Hugo, Stevenson, entre outros.
O custo dessa empreitada (editar e imprimir 300.000 livros “O Alienista”, de Machado de Assis; 300.000 livros “A Pata da Gazela”, de José de Alencar e 600.000 livretos com dicas para formar um bom leitor), totalizou R$ 1 milhão. Ou seja, R$ 1,67 o exemplar. Recursos captados por meio da Lei de Incentivo à Cultura de nosso país.
Se há algo de positivo nessa controvérsia gerada pelo meu projeto é que os jornais estão discutindo acesso à leitura, algo que não deveria jamais sair da pauta dos veículos de comunicação. Oxalá todos que se mobilizaram nessa polêmica peguem seus exemplares de Machado de Assis das prateleiras para um delicioso reencontro. Tenho comigo a sensação de que, ao fazê-lo, tomarão consciência de que o Bruxo do Cosme Velho, em toda sua genialidade incontestável, não gostaria de permanecer para sempre como um desconhecido desta multidão de brasileiros.
* Patrícia Engel Secco, 51, é escritora, formada em Administração e já publicou mais de 200 livros, dentre eles "As Perguntas de Luísa", "A Felicidade das Borboletas", "Juca Brasileiro e o Hino Nacional" e "O Grande Dia".
Confira a seguir alguns dos exemplos da adaptação do conto "O Alienista" (1882), de Machado de Assis, realizada por Patrícia Secco:
Trecho 1 – retirado do capítulo 1
Versão original:
"As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
—A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte".
Versão do projeto 'Os Clássicos e a Leitura':
"As crônicas da vila de Itaguaí dizem que, em tempos remotos, viveu ali um médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho de nobres e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e da Espanha. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos, regressou ao Brasil, uma vez que o rei não conseguiu fazer com que ficasse em Coimbra, dirigindo a universidade, ou, em Lisboa, cuidando dos negócios da monarquia.
– A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu único emprego. Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, mudou-se para Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras. Aos quarenta anos, casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz, nem bonita, nem simpática. Um dos tios dele, extremamente franco, admirou-se da escolha. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia características fisiológicas e anatômicas de primeira ordem: digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista. Estava, assim, apta a dar-lhe filhos robustos, saudáveis e inteligentes. Se, além dessas qualidades – que eram as únicas dignas da preocupação de um sábio – D. Evarista era realmente feiosa, longe de ficar reclamando disso, Dr. Simão agradecia a Deus, já que assim não corria o risco de deixar de lado os interesses da ciência para se entreter unicamente admirando a esposa."
Trecho 2 – retirado do capítulo 5
Versão original:
“Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que...
—Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.
—Não?
—Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.”
Versão do projeto 'Os Clássicos e a Leitura':
“Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa enlouquecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis, ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram falar com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um louco. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, tendo em vista do modo como gastou a fortuna que...
– Isso, não! Isso, não! Interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.
– Não?
– Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas, quando estava furioso, era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi. Imagine como ficou.”
Trecho 3 – retirado do capítulo 12
Versão original:
“Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.”
Versão do projeto 'Os Clássicos e a Leitura':
“Os alienados foram alojados por classes. Foi feita uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verdadeiros, outra de pessoas simples, outra de leais, outra de magnânimos, outra de espertos, outra de sinceros etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos reclamavam com veemência contra a teoria; alguns tentaram forçar a Câmara a cassar a licença. A Câmara, porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, ele estaria de volta e restituído ao seu lugar. Por isso recusou. Simão Bacamarte fez um ofício aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e garantiram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à frente de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se arrependera, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus seguidores. Já que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista por um ano, cabia ou esperar o fim do prazo ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.”
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