Velório fechado, lágrimas e tatuagem marcam despedida de García Márquez
Umas poucas coroas de rosas de cor amarelo vivo destoavam do branco dominante das flores que decoraram a fachada da funerária García Lopez Casa de Pedregal, região sul da Cidade do México, que recebeu na tarde desta quinta-feira o velório do escritor colombiano, prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez, morto por volta do meio-dia desse mesmo dia. Essa era a pouca beleza da despedida, restrita a familiares e assegurada por mais de 40 policiais que tomavam a frente do local.
A atitude dura dos policiais, que desviavam o tráfego local, afastou também o público, resumido a um mar de jornalistas e fotógrafos. Admiradores do escritor, tímidos, eram minoria. Mas uma minoria de olhos marejados, cheios de reverência, saudade e tristeza.
"Sinto que cheguei tarde demais. Não acredito que isso seja real, que esteja acontecendo de verdade." Omar Rivera, de 33 anos, sentou-se na calçada e pôs-se a ler em voz alta um trecho de "Olhos de Cão Azul", livro de contos do escritor. Seu momento catártico por pouco não foi interrompido por policiais. "Ele era uma inspiração, uma força na minha vida", desabafou o físico, fã de literatura. O gosto por livros veio do avô. Começou com "Cem Anos de Solidão", aos 13. Não parou mais. "Sinto como se tivesse perdido alguém muito próximo, sendo que nunca o conheci. Que ironia."
Mais resignadas, a poucos metros nessa mesma calçada, duas garotas seguravam buquês e dividiam um cigarro. As estudantes Karen de Ávila e Luz Vega, ambas de 22 anos, foram as primeiras a chegar. "Seguimos o carro que saiu do hospital com ele", disse Karen, emocionada. "Espero que nos deixem entrar, queremos nos despedir, nem que seja de longe, mas lá dentro."
A amiga já previa a longa espera. "Não temos nenhum lugar para ir. Vamos esperar. É o García Márquez que está lá dentro", apontou, agoniada, para a barreira impassível de policiais, com ar de groupie de rock star. "Ele me ensinou a gostar de ler. Ele me abriu o mundo dele e eu entrei. Não sei se estou preparada para sair." Karen prontamente lhe diz para reler os livros, todos. Ela concorda com a cabeça.
E é Karen que se põe a rir, sozinha. Como quem se lembrou de uma piada irresistível, ela conta: "Eu descobri hoje onde era a casa dele. Nunca tinha procurado saber, mas não poderia imaginar que era na rua pela qual passo todas as manhãs pra pegar o ônibus. Sabe quantas vezes eu passei por aquele portão sem saber quem estava do outro lado?", diz a garota. "E tantas vezes com o livro dele na mochila." A amiga, sem entender, dá de ombros. "Que diferença faz?". Karen não hesita: "Faz diferença, sim. Ele estava perto, sempre. E precisou ele morrer pra eu descobrir. É a cara dele pregar esse tipo de peça..."
Do outro lado da rua, um casalzinho trazia flores amarelas -- ele, Alberto, na gola da camiseta; ela, Beatriz, no cabelo e no casaco. "Era a cor preferida dele", diz Beatriz. A cor também está presente no livro mais famoso de García Márquez, "Cem Anos de Solidão", que faz menção a flores amarelas.
"Esse livro é uma das poucas grandes coisas que temos em comum, e teve participação decisiva na nossa história", conta Beatriz Chávez, 20. O primeiro presente ao hoje noivo Alberto Rojas, 20, foi um exemplar. "Li três vezes, e sigo aprendendo algo novo. Depois dele, li outros, mas esse é o nosso livro", completou Alberto.
Quando souberam do estado frágil do escritor, no ano passado, os jovens decidiram tentar a sorte por um autógrafo. Uma aventura difícil, já que "Gabo", como era carinhosamente conhecido, poucas vezes fazia aparições públicas na Cidade do México, onde veio viver há quase cinco décadas com a esposa Mercedes. Bateram à porta de Márquez, dispostos a convencê-lo. "Ele estava na Colômbia e seu bibliotecário nos atendeu. Fez perguntas e nos disse para deixar um contato e um livro", conta Beatriz. Desconfiados, preferiram deixar o mais recente dele, "Memória de Minhas Putas Tristes" (2004).
Hoje, exibiam o autógrafo, feito com letra torta e visível dificuldade motora, com um misto de orgulho e pena. "Por que não deixamos o nosso livro preferido?!", lamentou Alberto.
Mas Beatriz abre um sorriso enquanto ergue a barra da blusa. Na lateral da cintura, o nome rabiscado do escritor virou tatuagem. "É minha homenagem pra ele. Pra mim, ele segue vivo."
Abraçado pela namorada, Alberto brincou: "Estamos casados pela religião 'garciamarqueana', não podemos nos separar". Mas se por acaso isso acontecer? "Imagina a briga pra ver quem fica com o autógrafo?"
Gabriel García Márquez morreu nesta quinta-feira em sua casa na Cidade do México, aos 87 anos. Em março, ele foi internado na capital mexicana devido a uma infecção nos pulmões e vias urinárias. Depois de 10 dias no hospital, passou a recuperar-se em casa, na região sul de Pedregal. Havia suspeitas de que ele estivesse em tratamento contra câncer, doença que já o havia acometido em 1999.
O corpo de Márquez será cremado na funerária onde é velado. a mesma funerária que ele está sendo velado, na avenida San Jerómino, região sul da Cidade do México. A decisão foi anunciada em frente à casa do escritor por Maria Cristina García, diretora do Instituto Nacional de Bellas Artes (INBA), que confirmou que este foi um pedido da família.
Ainda não há informações sobre o horário da cerimônia, nem detalhes sobre o destino final das cinzas de García Márquez, se ficarão no México, onde viveu as últimas quase cinco décadas, ou serão levadas à Colômbia, seu país natal
O público poderá se despedir do escritor em uma homenagem no Palácio de Belas Artes na segunda-feira (21), às 16h.
Vida e Obra
Considerado o escritor de língua espanhola mais popular desde Miguel de Cervantes, no século 17, García Márquez alcançou celebridade literária que gerou comparações com clássicos das letras universais como Mark Twain e Charles Dickens. Suas obras ficcionais extravagantes e melancólicas --entre elas "Crônica de uma Morte Anunciada", "O Amor nos Tempos do Cólera" e "Outono do Patriarca"-- superaram em vendas qualquer outra publicação em língua espanhola, com exceção da Bíblia.
O romance épico "Cem Anos de Solidão" vendeu mais de 50 milhões de cópias em mais de 25 idiomas. Publicado em 1967, é um dos exemplos principais do chamado realismo fantástico e marcou um boom da literatura latino americana que durou duas décadas. A obra narra a saga de gerações da família Buendí e foi "o primeiro romance em que os latino-americanos se reconheceram, que os definiu, que celebrou sua paixão, sua intensidade, sua espiritualidade e superstição, sua grande propensão ao fracasso", disse o biógrafo Gerald Martin à agência Associated Press.
Ao receber o Nobel, em 1982, García Márquez descreveu a América Latina como uma "fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, do qual este errante e nostálgico colombiano não é mais que uma fração, destacada pelo destino. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todas as criaturas daquela realidade desenfreada, deixaram pouco a extrair da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios convencionais para tornar nossa vida verossímil".
Biografia
Gabo, como era carinhosamente chamado, nasceu no dia 6 de março de 1927, em Aracataca, na Colômbia. Criado pelos pais de sua mãe, cresceu ouvindo as histórias de seu avô, Nicolas Márquez, veterano da Guerra Civil colombiana, enquanto sua avó, Tranquilina Iguarán, costumava lhe contar lendas que misturavam fantasia e realidade. Essas narrativas foram fundamentais para que mais tarde o garoto se tornasse escritor.
As histórias de seus avós se tornariam também material para a ficção de García Márquez, e Aracataca inspirou Macondo, a vila cercada por plantações de banana no pé das montanhas da Sierra Nevada, onde "Cem Anos de Solidão" se passa. "Minha família me contou muitas vezes que comecei a recontar histórias e coisas assim quase desde que nasci", contou García Márquez em uma entrevista. "Desde que comecei a falar".
Enquanto atuava em jornais, esboçou os seus primeiros contos e uma extensa reportagem sobre o sobrevivente de um naufrágio na costa colombiana resultou no livro “Relato de um Náufrago”, hoje tido como um exemplo de bom jornalismo literário. Ao lado de escritores incluindo Norman Mailer e Tom Wolfe, García Márquez também foi um pioneiro da narrativa de não-ficção que se tornaria conhecida como New Journalism ou Novo Jornalismo.
Pobre e esfarrapado durante grande parte de sua vida adulta, García Márquez foi transformado por sua fama e riqueza tardias. Um "bon vivant" com personalidade travessa, o escritor era um anfitrião gracioso, que contava histórias longas, com animação, para os hóspedes. Ferozmente protetor de sua imagem, uma característica compartilhada por sua esposa, ele ocasionalmente se rendia a um temperamento explosivo quando se sentia menosprezado ou deturpado pela imprensa.
O homem político
Como muitos escritores latino-americanos, García Márquez transcendeu o mundo das letras. Desde cedo, Gabo tornou-se um herói para a esquerda latino-americana, aliando-se cedo ao líder revolucionário cubano Fidel Castro e criticando as intervenções violentas de Washington, do Vietnã ao Chile. Seus textos perfilaram o ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, além de retratarem como traficantes de cocaína liderados por Pablo Escobar abalaram o tecido social e moral de sua Colômbia natal, sequestrando membros da elite, tema de "Notícias de um Sequestro".
A escrita de García Márquez foi constantemente informada por seus pontos de vista esquerdistas, forjados em grande parte por um massacre de militares a trabalhadores bananeiros em greve contra a United Fruit Company (mais tarde, Chiquita) em 1928, perto de Aracataca. Ele também foi muito influenciado pelo assassinato, 20 anos mais tarde, de Jorge Eliécer Gaitán, candidato presidencial esquerdista em ascensão.
Ao longo da vida, García Márquez recusou ofertas de postos diplomáticos e tentativas de o lançar à presidência da Colômbia, embora tenha se envolvido nos bastidores das negociações de paz entre o governo da Colômbia e os rebeldes de esquerda.
Os últimos anos
Os últimos anos de vida de Gabo foram marcados por relatos sobre problemas de memória , que não foram confirmados oficialmente. As aparições públicas de García Márquez também foram mais escassas, apesar de ele continuar a socializar com amigos.
Em março deste ano, quando fez 87 anos, o escritor foi homenageado diante da imprensa por amigos e simpatizantes, que lhe deram bolo e flores do lado de fora de sua casa, em um bairro de elite na Cidade do México. Na ocasião, o autor mostrou-se sorridente, recebeu presentes e tirou fotos, mas não falou com os jornalistas. Nos últimos anos, restringiu ao máximo suas aparições em público e declarações por motivos de saúde.
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