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Gabriel García Márquez, o professor

Socorro Acioli*

Especial para o UOL

18/04/2014 11h52

Durante os anos de 1986 e 2006, Gabriel García Márquez dedicou algumas semanas de sua vida, geralmente em dezembro, para sentar-se em uma sala de aula com jovens escritores de vários países da América Latina e ensinar os segredos do ofício, que ele chamava de “a bendita mania de contar". 

As aulas aconteciam na Escuela de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba, e eu tive a imensa sorte de ser a única brasileira da última turma da oficina "Como contar um conto", conduzida pelo mestre disposto a compartilhar, sem cobrar nada dos alunos, sua valiosa experiência como ficcionista.

Na manhã do dia 4 de dezembro de 2006, por volta das nove e meia, estávamos todos sentados na sala, aguardando a primeira palavra de García Márquez para o começo dos trabalhos. Ele foi breve: “Bom dia. Eu não estou aqui para falar e sim para escutar. Contem as suas histórias”.

García Márquez estava ali para nos escutar e ajudar. Era quase inacreditável. Sua generosidade era movida por um sentimento de missão: ele queria colaborar para que nós, jovens autores latino-americanos, contássemos as histórias do lugar de onde viemos.

Cada aluno deveria apresentar um projeto de texto a ser desenvolvido, e o meu foi o esboço de roteiro de cinema intitulado “A Cabeça do Santo”, que em 2014 foi publicado em forma de romance (mudei de ideia) pela editora Companhia das Letras.

O texto conta a jornada de um personagem miserável, no sertão do Ceará, onde nasci, que entra por acaso em uma cabeça oca, gigantesca e inacabada de uma estátua de Santo Antônio, cujo corpo estava no alto de um morro por perto,  e começa a ouvir as orações das mulheres para o santo, pedindo casamento. Não tivemos tempo de terminar o texto durante a oficina, mas ele me fez prometer que terminaria. Levei oito anos trabalhando nisso, mas cumpri a promessa.

Uma das coisas mais importantes que aprendi nessa oficina com García Márquez foi a certeza de que o artista, o escritor, deve entender exatamente o lugar de onde fala, em qual idioma escreve, sob quais condições, diante de quais injustiças, sobre os escombros de quais misérias. Um escritor precisa saber quem é e construir sua própria voz.

Foi com esse sentimento de afirmação de sua identidade que García Márquez compareceu à entrega do Prêmio Nobel em dezembro de 1982 vestindo o liquiliqui, um tradicional traje de linho branco usado pelos camponeses do norte da Colômbia e da Venezuela. O protocolo da Academia de Letras e Artes da Suécia determina que os laureados usem fraque ou, em casos especiais, uma vestimenta que represente algum aspecto cultural de seu país.

Sobre a roupa branca, um quase buquê de rosas amarelas afastava la pava -- como é chamada a falta de sorte, no Caribe. E assim, vestido como um caribenho, ele recebeu o maior prêmio de literatura do mundo.

O que ele queria de nós, seus alunos, é que fôssemos honestos com nossa própria identidade e com a história do nosso continente sofrido.
Desde o final da oficina, em 2006, não há um dia sequer em que eu escreva qualquer coisa sem lembrar dessa e tantas lições que aprendi com o mestre.

No dia de sua morte, faço questão de relembrar o homem imensamente generoso que Gabriel García Márquez foi ao dedicar-se ao ensino da narrativa para jovens iniciantes ao longo de vinte anos. E guardo como um amuleto de força e coragem, a sorte de ter feito parte disso. 

´* Socorro Acioli é jornalista, Doutora em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense. O livro iniciado na oficina de Gabriel García Márquez, “A cabeça do Santo”, foi publicado em Fevereiro de 2014, oito anos depois, pela editora Companhia das Letras. 

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