Topo

Popularizada por frases de Facebook, obra de Clarice Lispector faz 50 anos

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

28/03/2014 05h00

Qualquer um que navegue por redes sociais encontra facilmente citações profundas e inteligentes atribuídas a pessoas famosas. Atribuídas porque, muitas vezes, as frases nunca foram compostas pelos nomes que as acompanham. A prática, se por um lado populariza o nome do autor, por outro o banaliza. No Brasil, uma das escritoras mais citadas e vitimadas na rede é Clarice Lispector.

Melhor do que consumir frases aleatórias, e muitas vezes falsas, é ter contato com a própria obra dos escritores. No caso de Clarice, um de seus livros mais importantes está fazendo aniversário: em 2014, "A Paixão Segundo G.H." completa 50 anos de publicação.

  • Reprodução

    Capa de uma das edições do livro "A Paixão Segundo G.H." (1964), de Clarice Lispector

O enredo do livro é simples: após demitir a empregada, uma mulher identificada como G.H. resolve fazer uma faxina em um quarto da casa e esmaga uma barata na porta do guarda-roupa. G.H. come parte do inseto morto. E, a partir desse evento banal com requintes nojentos, a moça mergulha em uma profunda reflexão existencial sobre seu lugar no mundo.

A busca se dá principalmente por meio de fluxos de consciência, técnica que tenta transcrever aquilo que se passa na cabeça do personagem de maneira que a escrita recrie o próprio pensamento. Essa procura de G.H. por respostas internas despertou paixão em muitos leitores ao longo do tempo.

"Li pela primeira vez quando tinha 12 anos e foi muito difícil. Passei metade do livro tentando entender as inquietações da personagem e terminei triste e confusa. Depois, reli aos 22 anos e foi totalmente diferente, já tinha amadurecimento suficiente para entender melhor o fato de G.H. comer a barata, vi que era uma forma de ela se libertar. O livro é um mergulho no íntimo tanto da personagem quando do leitor", contou a jornalista Juliana Gonçalves.

Outra fã que acentua a importância da obra teve em sua vida é a escritora Cristina Lasaitis. "'A Paixão Segundo G.H.' me deixou com a impressão muito forte de que eu conseguiria elaborar e comunicar qualquer ideia".

Se por um lado a obra desperta amores, por outro pode causar repulsa. É o que garante a professora e escritora Emília Amaral, autora de "O Leitor segundo G.H.". "Clarice propõe, em seu texto, grande proximidade com os leitores, uma espécie de pacto de leitura, o que faz com que alguns a idolatrem e outros se afastem dela, por não suportarem a intensidade da obra".

Importância da obra

"A Paixão Segundo G.H." é o quinto romance de Clarice Lispector, que nasceu na Ucrânia em 1920 e veio para o Brasil em 1922, onde construiu toda a sua carreira e se tornou um dos maiores nomes da literatura do século 20, ao lado de autores como a inglesa Virgínia Woolf e os irlandeses James Joyce e Samuel Becket.

Não vou fazer nada por ti porque não sei mais o sentido de amor como antes eu pensava que sabia. Também do que eu pensava sobre amor, também disso estou me despedindo, já quase não sei mais o que é, já não me lembro

"A Paixão Segundo G.H."

O livro não causou grande alvoroço em seu lançamento, mas foi ganhando destaque com os estudos de visões feministas e psicanalíticas e com o reconhecimento de grandes críticos, como Antônio Cândido, explica Emília. Com o passar dos anos, sua importância apenas cresceu, tanto que Clarice está entre os nomes mais citados no Facebook e no Twitter, uma pesquisa feita pelo programa Conexões do Itaú Cultural, e também é o segundo nome da literatura nacional mais estudado por universidades estrangeiras, ficando atrás apenas de Machado de Assis.

Hoje, na visão de Emília, "A Paixão Segundo G.H." continua sendo um romance essencial porque "é uma forma livre, híbrida, por meio da qual exercita-se algo que confirma e depura a humanidade do homem: o contato com histórias ficcionais que buscam e discutem sentidos, muitas vezes cifrados, para decifrarmos a realidade".

E para quem gostaria de conhecer --ou redescobrir-- o livro, a professora indica quais os principais pontos para se atentar. "A revolução espiritual que G.H. vivencia, praticamente inenarrável, indizível, merece conhecimento e uma espécie de iluminação dele decorrente". Pode até soar complicado --e talvez seja mesmo--, afinal, é essa complexidade que se espera de uma obra e de uma autora que são muito mais do que fontes de frases para redes sociais.