Em crise de produção de HQs, Laerte lança sua história mais longa; conheça "Vizinhos"
Hoje conhecido como ativista nos debates sobre gênero e sexualidade e influente nas mídias sociais, onde discute de política e estilo de vida a banheiros femininos, Laerte despertou a curiosidade da mídia quando se revelou crossdresser, em 2010. Mas em entrevista ao UOL por telefone, em que comenta o lançamento de "Vizinhos", sua primeira graphic novel inédita em tanto tempo que ele mal consegue lembrar, o cartunista voltou para onde tudo começou: as páginas dos quadrinhos.
A demora em produzir algo novo é justificada por uma crise do cartunista, que lançou sua última coletânea, "Muchacha", com ajuda do filho Rafael Coutinho, há três anos. "Nem me fala das dificuldades, tive muitas crises em relação ao meu trabalho, ao meu traço, ao meu modo de fazer. Faço uma história e em seguida começo um processo crítico em cima do que acabei de fazer que mexe bastante, muda tudo ou deixo pra lá. Quando eu faço peças curtas, como as que faço para a 'Folha de S.Paulo', tiras, tudo bem, por que como a entrega é para o outro dia, a crítica não tem tempo de se instalar como empecilho", comenta entre risos.
Laerte é famoso pelo humor sarcástico de histórias da década de 1980 como "Piratas do Tietê", personagens como o super-herói bipolar Overman e a desbocada Muriel, além da parceria com Angeli e Glauco na revista "Los Tres Amigos". Na contramão de seu trabalho para o jornal, em que escreve tiras baseadas em humor, o caminho de "Vizinhos", que será lançada nesta segunda (1), pela Narval Comics, é bem diferente. Essa é a história mais extensa da carreira do cartunista.
Com traço feito com lápis, suspense expressivo e uma história cotidiana minimalista, que remete a roteiros que consagraram quadrinistas como Will Eisner e Harvey Pekar, o brasileiro narra uma disputa de território entre um flanelinha e um morador do local. A cena é real e foi inspirada em uma observação que durou meses no apartamento que o cartunista morava no bairro de Perdizes, zona oeste paulistana.
"Em Perdizes, é muito frequente essa figura do flanelinha, do guardador de carro que também trabalha com pequeno tráfico e tem uma relação com o espaço e o ponto que é de posse, de ocupação. Essa história fez parte da minha experiência pessoal e eu estava precisando exprimir isso de alguma forma, já tinha contado em algumas rodas de amigos", diz o cartunista. Ele ainda comenta que os traços dos prédios e da rua foram "usados como referência para dar uma inspirada."
O desenho dos personagens se assemelha a trabalhos mais antigos e realistas de Laerte, que atualmente tem personagens riscados de forma mais caricatural. "Eu gosto dessa expressão e tentei fazer esse traço realista com um pouco do meu traço atual também, acabei fazendo a lápis, acho que me resolvo melhor no lápis."
Uma dessas histórias antigas é "Minotauro", lançada na revista "Geraldão", criada pelo cartunista Glauco Villas Boas e publicada pela Circo Editorial entre os anos de 87 e 89. Fora de circulação desde a década de 90 e sem versão online, Laerte disponibilizou a história para UOL. "Eu era muito metido, tinha até título em grego", relembra entre risos.
"Engraçado que essa história do Minotauro também é muda e também envolve uma ideia de duelo. Ela entrou na revista não me lembro o ano. Minha rotina envolve uma produção que é muito parecida, só fazer piada, fazer piada. Tudo que escapa disso fica em evidência", comenta. A história, assim como "Vizinhos", também não tinha balões de diálogo e é colorida apenas em preto e branco. No trabalho mais recente, a tensão é realçada pelo uso do vermelho.
"Isso [o vermelho] é coisa do Rafael, ficou bárbaro. Eu mostrei pra ele no início, quando tinha fechado o roteiro em uns rascunhos grosseiros e ele gostou da história, depois fui tocando no meu ritmo, porque sou uma pessoa muito dispersa e ultimamente tenho me tornando mais disperso. Como estava indo, eu estava tranquila de que uma hora ia sair. Mas a pressão do Rafael, que queria botar na rua, ajudou a terminar". O filho de Laerte é quem cuida do selo e da série MIL, que publica revistas e livros de novos cartunistas, como Lucas Gehre e Rafael Sica.
Laerte diz achar "promissora" a ideia de quadrinhos em versão digital, mas conta que ainda não experimentou os aplicativos e leitores digitais de quadrinhos. Ele também fala sobre alguns de seus autores atuais preferidos. "Estou lendo um livro do Luciano Sades. Estou dando uma olhada aqui na minha prateleira de livros. Gosto muito das coisas da Peixe Fora D'Água, da Beleléu, também acompanho a produção de zines."
A leitura e a paixão pelas histórias foi o que levou Laerte de leitor a criador. "Eu comecei a fazer quadrinhos porque eu gostava de ler quadrinhos. Para mim, uma história em quadrinho tem o significado da impressão dos outros. Como quando você quer muito fazer uma coisa por que gosta de vê-la feita por outras pessoas, você está criando uma expressão que te coloca em contato com a sua história, um contato menos subjetivo. Produzir essa nova história foi legal, foi uma boa coisa a se fazer."
"Vizinhos", de Laerte, na série MIL
24 páginas
Pré-venda autografada por R$ 20 na Narval Comics
Lançamento em São Paulo
Quando: segunda-feira (1), a partir das 19h30
Onde: Mercearia São Pedro (R. Rodésia, 34 - Pinheiros São Paulo. Tel. 0xx11 3815-7200)
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