Símbolo dos anos 70, "Laranja Mecânica" ganha nova edição
Ícone da cultura pop, o livro "Laranja Mecânica", do escritor inglês Anthony Burgess, completou 50 anos. A saga perturbadora e ousada do anti-herói Alex DeLarge, líder de um grupo de adolescentes arruaceiros, ganhou uma merecida homenagem para celebrar a data. Uma edição especial de luxo e capa dura, com material inédito do autor e ilustrações de Angeli, Dave McKean e Oscar Grillo.
A nova edição brasileira lançada pela editora Aleph permite um olhar mais profundo sobre umas das ficções mais importantes da cultura britânica. O recheio principal é o texto original de Burgess, com tradução competente de Fábio Fernandes. O responsável por restaurar a história linha a linha, com base nas primeiras edições, foi o diretor da Fundação Anthony Burgess, Andrew Biswell, organizador da edição especial inglesa, publicada em 2012.
Traz ainda os originais datilografados, com anotações e ilustrações do autor. Textos e uma entrevista inédita mostram as motivações do escritor e sua opinião sobre a repercussão do livro e do filme, feito por Stanley Kubrick, e que curiosamente excluiu o último capítulo, tal como a primeira edição norte-americana.
Aparecem curiosidades, como no ensaio de 1976, em que Burgess diz não considerar seu ofício algo útil, que deva ser levado a sério. “O romancista faz o tempo passar (...), é um tipo de palhaço (...), faz malabarismos com as palavras como se fossem bolinhas coloridas. Por vezes, pode ser tragado a contragosto para a esfera do pensamento sério”.
A surpresa com o sucesso de ‘Laranja’ está em um dos textos extras. “Entre todos os meus livros é o que menos gosto”, disse em entrevista de 1972. Segundo ele, revela muito das preocupações que ocupavam sua mente à época – sua esposa foi vítima de violência semelhante à descrita na história.
O titulo insólito do livro, diz Burgess, é o mais fácil de explicar. “Ouvi um velho dizer em um pub que certa pessoa era tão bizarra quanto uma laranja mecânica”. Desde então, ficou matutando onde utilizar a expressão.
Distopias célebres
"Laranja Mecânica" foi escrito em ritmo alucinado por Anthony Burgess (1917-1999) em 1961, e publicado pela primeira vez em 1962. O motivo da pressa era garantir o sustento da esposa após a morte. Ele tinha sido diagnosticado – equivocadamente – com um tumor no cérebro e temia nem terminar o livro. Entretanto, quem morreu poucos anos depois foi sua mulher. Burgess se casou novamente e produziu até a morte, aos 76 anos.
"Laranja Mecânica" logo ganhou destaque entre outras distopias célebres, como ‘Admirável Mundo Novo’ (1932) de Aldous Huxley e ‘1984’ (1949), de George Orwell, que até hoje fomentam discussões acaloradas.
A narrativa em primeira pessoa conduz o leitor a uma imersão no universo sombrio de Alex, (narrador e protagonista) e de sua gangue. Uma história cheia de roubos, mutilações, estupros e vandalismos diversos. Em resumo, a tal ultraviolência, movida a leite com drogas e trilha sonora de Beethoven – mais especificamente a "Nona Sinfonia".
O ponto nevrálgico é quando, após uma noitada de muita pancadaria, Alex é preso e submetido a uma terapia de condicionamento patrocinada pelo Estado para eliminar seus impulsos violentos. Um método tão doloroso e desumano quanto à ultraviolência de Alex. Ele volta à sociedade incapaz de reagir a qualquer agressão por menor que seja, impotência que o leva quase ao suicídio.
“O que tentei argumentar com o livro era o fato de que é melhor ser mau a partir do próprio livre-arbítrio do que ser bom por meio de lavagem cerebral científica”, explica Burgess, em ensaio de 1973. O escritor reclama ainda do epílogo, suprimido na versão de Kubrick, que mostra Alex crescendo, aprendendo a desgostar de seu antigo estilo de vida.
Para o ator Malcom McDowell, que viveu Alex nas telas, Burgess ficou ressentido por julgar não ter recebido o bastante pela adaptação e que teria feito o último capítulo às pressas, a pedido do editor, afirmou em entrevista à revista Cult.
De fato, o sucesso da ‘Laranja’ de Kubrick, lançada em 1971, foi tão grande que a autoria da história para muitos era atribuída ao diretor – que recebeu quatro indicações ao Oscar, mas não levou em nenhuma categoria.
Para retomar sua obra, em 1987, Burgess levou a trama para o teatro. No final do espetáculo ele faz um divertido acerto de contas. Um barbado, semelhante a Kubrick, que toca no trompete ‘Singin in the Rain’, é expulso do palco a pontapés.
Cartilha sobre lavagem cerebral
Pancadarias e estupros correm soltos no livro e principalmente no filme que, claro, foi proibido em alguns países. No Brasil, pôde ser exibido somente em 1978 – e com bolinhas pretas escondendo as genitálias dos personagens. Na Inglaterra, o próprio Kubrick cancelou a exibição, incomodado com a crítica. Só voltou a ser exibido após a morte do diretor norte-americano.
Umas das respostas de Burgess para a acusação de uma entrega gratuita à violência é o uso pelos personagens do dialeto nadsat, criado pelo escritor – uma mistura de gírias de gangues inglesas (teddy-boys, mods e rockers) com palavras do idioma russo. Segundo ele, uma forma de amenizar a violência, torná-la mais simbólica do que realista. “Não foi prazer nenhum narrar atos de violência ao escrever o romance”, diz.
A tradução da atual edição manteve o glossário que traduz a linguagem (organizado para a primeira edição norte-americana, contra a vontade de Burgess), e foi acrescida com novo material baseado em outras relações, como a versão compilada para o The Kubrick Site.
Diferentemente do que pode parecer, o nadsat não se trata de mais um detalhe singular na obra. A linguagem inventada representa um ponto fundamental nas intenções do escritor inglês. “Foi criada para transformar ‘Laranja Mecânica’ em uma cartilha sobre lavagem cerebral”, argumenta. Ele acrescenta que após ler o livro ou ver o filme, o leitor se verá de posse de um mínimo vocabulário russo, sem nenhum esforço. “É assim que funciona a lavagem cerebral”, alerta.
A epopeia de Burgess fala das fronteiras incertas entre o bem e o mal. No mesmo balaio, o delicado debate entre alma humana, condicionamento social e liberdade. Tempo e lugar são indefinidos. Segundo o autor, poderia acontecer em qualquer cidade, na sua terra natal, Manchester, ou em Londres, Leningrado, Nova York. E a imprecisão da data também pouco importa, "Laranja Mecânica", ao lado de "1984" de George Orwell, parece retratar um futuro cada vez mais atual.
Do punk aos Simpsons, veja algumas das principais influências de ‘Laranja Mecânica’
Há quem diga que o clássico cinquentenário ‘Laranja Mecânica’, de Anthony Burgess, imortalizado nas telas por Stanley Kubrick, tenha colaborado para a criação do movimento punk. Fato ou não, é certo que, de Simpsons a Batman, passando por David Bowie e Madonna, muitos tiraram um caldo (ou um suco) do antológico livro, que ao lado do filme, foi consagrado como um marco na cultura do século 20.
A explicação para o sucesso pode estar nas complexas indagações filosóficas que a história impõe e na estética transgressora do universo apocalíptico da saga do anti-herói, Alex DeLarge, que até hoje rendem referências e homenagens na música, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e que também já embalou muitas discussões intelectuais. Veja algumas das principais influências do livro no universo pop mundo afora.
Antes de Kubrick, Andy Warhol já havia arriscado uma livre interpretação no filme ‘Vynyl’, de1965.
A banda brasileira de metal, Sepultura, lançou em 2009 o álbum "A-lex", todo inspirado no livro, as músicas cantam a ascensão e queda do personagem, usando palavras da linguagem nadsat .
O idioma nadsat também dá nome a banda anglo-irlandesa Moloko (o leite misturado com drogas) e ao grupo punk norte-americano The Devotchkas, formado por garotas.
A banda irlandesa U2 também entrou na onda e mandou ver na música "Alex Descends into Hell for a Bottle of Milk/Korova 1", do single "The Fly", de 1992.
David Bowie admitiu que as ideias para visual e personagem de "Zigg Stardust", de 1972, vieram de "Laranja Mecânica". Madonna também já investiu em um figurino semelhante ao de Alex.
Mas o campeão imbatível em citações e referencias é o seriado "Os Simpsons", que já fez piada até com a famosa sequência de lavagem cerebral de Alex.
Moda e bebidas também se renderam ao sucesso do bando de Alex. No Brasil, em 2011, o estilista Alexandre Herchcovitch criou uma coleção inteira baseada no filme.
E por fim, a história de Burgess também virou nome da premiada cerveja inglesa, a Clockwork Orange (óbvio), conhecida pelo sabor amargo, e que contém (quem diria) laranja entre seus ingredientes.
Serviço:
Livro: "Laranja Mecânica" (A Clockwork Orange)
Autor: Anthony Burgess (tradução de Fábio Fernandes)
Ilustrações: Angeli, Dave McKean e Oscar Grillo
352 Páginas
Preço: R$ 79
Editora: Aleph
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